Os negros que conheci
Até os 10 anos de idade, a recordação que trago dos negros vem de Garanhuns, Pernambuco, minha terra natal. Lá, em áreas que reverberavam o Quilombo dos Palmares, em Alagoas, tínhamos uma altiva comunidade de pretos chamada de Castainho. Se nos anos 1960 eles ainda cultivavam a melhor fava e as ervilhas mais tenras, mamãe dizia que isso já era de regra desde os anos 1930. Sorridentes, sem o menor traço de miscigenação, eles e elas eram muito divertidos. Numa época em que as pessoas ainda tinham os dentes meio desfalcados, eles os tinham alvos e inteiros. Uma amiga da família, Dona Marita, disse certa feita que sonhava em ter um menino do Castainho para brincar com o filho, mas eles sempre declinavam do convite, e não aceitavam serviços domésticos. Era o traço mais evidente da independência e da bonita altivez de uma linhagem cujos ancestrais haviam lutado ao lado de Zumbi dos Palmares em pessoa.
Entre os 10 e os 20 anos, acelerou-se a convivência, mas ela ainda foi pequena. Tivemos duas empregadas domésticas negras, Terezinha e Cristina, e, ao entrar no Colégio de Aplicação, lembro de apenas dois alunos de pele bem acobreada. Não digo que eram pretos porque não eram. Eram talvez o que o IBGE chama de pardos. Um se chamava Sergio, morava em Olinda, e vez por outra descíamos até o ponto de ônibus da Rua Riachuelo. Pouco depois deixou o Aplicação. Outra se chamava Júlia e estudava em minha classe. No corpo docente, tivemos três negros, todos em matemática: José Ramos, Rosilda e Élcio. Dizia-se que o último uma vez dera um sopapo num colega que, diante do filho do professor, lhe perguntou o "nome do macaquinho". O caso correu à boca pequena. Na Alemanha, conheci africanos no Goethe-Institut. Aos 17 anos, sentei à mesa do café da manhã com Maria, da Rodésia e, pela primeira vez, os negros não estavam servindo, senão lado a lado.
Daí em diante, o convívio se tornou mais corriqueiro, ainda que muito escasso. Meu melhor amigo nesses tempos na Europa foi do Mali, o divertido Modibo Keitá, que sonhava em ser piloto de avião. Na faculdade, tínhamos estudantes do Cabo Verde e certa vez levei uma turma para jogar futebol no Country Club, de que papai era sócio. O porteiro, negro, que ficava na guarita da Rosa e Silva, desaprovou com meneios de cabeça a presença de Manuel. Discuti com ele, mas tive de ser moderado na minha contundência porque o jogo podia virar, e alguém poderia dizer que eu estava sendo duro porque ele era preto, ademais de vigilante. Em Brasília, não lembro de estudantes negros na UnB, mas sabia de um oficial de chancelaria que trabalhava na Finlândia que era negro. Chamava-se Joaquim Barbosa e um dia se tornaria ministro do STF por alguns anos. Chegando a São Paulo, conheci um deputado negro que integrava as hostes malufistas e fomentava comércio com a África.
Dos 30 anos até hoje, passou a imperar alguma confusão. Meu amigo Roberto Santos, falecido há quase 8, se dizia negro, mas não me parecia. Era o que se chama na Bahia de Cabo Verde, inclusive pelos olhos claros. Foi ele quem mais me ensinou sobre o que significa não ser branco em certos meios. Contava que uma vez pulara o muro do Círculo Militar, no Recife, durante uma festa, e convidou uma menina para dançar. Ela aceitou, mas o pai os teria abordado e dito que não criara a filha "para alguém de seu bico". Lendo o livro "Na minha pele", de Lázaro Ramos, identifiquei em muitas passagens o que me dizia Robertinho. Com ele falávamos sobre um episódio doloroso da Rua da Aurora de nossa infância. Um deputado do Agreste, cuja esposa não tivera filhos, adotara um bebê negro. Diziam que tinha sido o primeiro aluno preto do Marista. Mas em dado momento da juventude, ele abraçou a bebida e morreu logo. Parecia ter sucumbido a complexos inelutáveis.
Seja como for, essa questão para mim nunca se colocou da forma como existe hoje na sociedade brasileira. Depois de ter percorrido o mundo várias vezes, e de ter visitado cidades em 180 países, sei que uns povos são refratários a outros e as questões de raça são um traço identitário que designa o inimigo. A começar pela África, onde um nigeriano uma vez me explicou como reconhecer aqueles de quem não deveria gostar pelas lacerações a ferro que traziam nas bochechas. O caso das Américas é tremendo porque ligado ao tráfico de escravos. Pouco mais de um século depois da chamada Abolição, é óbvio que os negros ainda se ressentem da falta de quadros para ocupar o proscênio da vida econômica e cultural em muitos países. Movimentos de retorno à África, tanto no Benin quanto na Libéria, fracassaram rotundamente. Pegue-se uma feira de tecnologia, e não se verá um único negro. Até em Israel, os judeus etíopes se queixam de exclusão.
Eis uma questão sobre a qual só posso mesmo ensaiar esses pequenos traços memorialísticos. De tão complexa que é, já ouvi dizer que Obama tinha maior aceitação entre brancos do que entre negros, que o consideravam excessivamente cooptado pelo "establishment". O que mais se ouve, não sem razão, é que, ao pensarmos na questão de como desanuviar tensões, convém que nos abstraiamos dos negros de sucesso dos esportes e da música. Nada de Jordan, Poitier, Wonder ou Armstrong. Estes estão no "andar de cima" e admitir que se gosta deles é um truísmo cínico. Quem não gostaria? É nesse impasse que vivemos em pleno 2017. Silenciar é grave, sugerir é delicado e até testemunhar pode ser complicado. A fórmula de inserção passa, evidentemente, pela melhoria das condições do país. Se quebrarmos as finanças públicas e se não conseguirmos elevar os padrões educacionais, o impasse vai perdurar e viveremos de espasmo em espasmo.
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