O apedrejamento de William Waack
Reza a lenda que o velho Roberto Marinho teria mandado um recado aos militares que tentaram enquadrar os esquerdistas das redações que comandava. A crermos na lenda, pontuou com autoridade: "De meus comunistas, cuido eu". E a "tigrada", como gosta de dizer Élio Gaspari, botou a viola no saco e parou de perturbar o sossego daquela gente de bem, acuada no exercício profissional opinativo. Em igual medida, o ucraniano Adolfo Bloch, cuja família sobrevivera a "pogroms" e perseguições cossacas, abriu os braços para receber jornalistas ameaçados pelo obscurantismo. Ivanildo Sampaio, um farol da imprensa pernambucana e nacional, contou dia desses nas páginas de "Será?" a acolhida que teve na Manchete, no Rio de Janeiro, no rescaldo da cobertura que fizera no Recife da morte do padre Henrique, e que lhe valera ameaças sinistras. Como sabemos, a largueza não é privilégio brasileiro. Da Argentina dos militares até a Rússia de Putin, passando pelo "Charlie Hebdo" e pelo "Le Canard Enchaîné", protege-se a prata da casa como precioso ativo, mesmo quando o terror invade a sede e mostra sua pior face.
Mas algo de fundamental vem mudando no caráter dos homens em resposta aos poderes manipuladores das brigadas furibundas da Internet. Ora, a Globo, a outrora Vênus Platinada do Jardim Botânico, resolveu ignorar a estatura do fundador e, de cócoras, ateia fogo nas vestes de profissionais em apuros, e cede à sanha de denuncismos de rés-do-chão, impensáveis em outros tempos. Dia desses, todos devem estar lembrados, torpedeou José Mayer por conta de um episódio tido como trivial naquelas plagas. Ora, se o ator assediou uma colaboradora, como parece ter mesmo sido o caso, tivesse ela acorrido ao RH e meio caminho estaria andado para que o caso fosse sancionado com rigor. Mas não foi isso o que aconteceu. A emissora deu prova cabal de inabilidade, ou de perversidade, como se queira, e optou por canibalizá-lo. Entregou-o numa bandeja ao jornalismo que, a seu turno, o serviu em rede nacional, levando a espetacularização a paroxismos de gosto macabro. A persistir condutas punitivas dessa ordem, há de se esperar que as telenovelas abracem um dia os padrões puritanos que a prática propugna. Ou não?
Agora chegou a vez desse simulacro de Macartismo acometer o jornalismo. Será William Waack catapultado para o Projac para que sua vida honrada vire novela? Ora, caros leitores, a Globo afastou-o por conta de uma alegada conduta ofensiva aos negros. Por ter dito, entredentes, uma patacoada que sai da boca até de Ministro do STF ao aludir a colegas, como disse Luís Roberto Barroso ao se referir a Joaquim Barbosa, como "um negro de primeira linha". Sou nordestino, vivo na cidade mais multiétnica do continente, já fui chamado de "baiano" mil vezes – sabendo da conotação pejorativa –, e nada aconteceu. Aliás, o que mais ouço é alusão a "programa de índio" em véspera de "dia de branco", ademais de "coisa de preto" em se tratando de condutas extravagantes, na linha do que professam Vampeta ou o "performer" Carlinhos Brown. Até judeus usam o verbo "judiar", candidamente, e os orientais sorriem ao ouvir o dito paulista de que "para mim é tudo japonês", alusivo à falta e individualidade de uma gente coletiva até nas feições. E quantos não dizem "turco ladrão" na Rua 25 de Março, entre sorrisos e gracejos?
Dessa feita, talvez para limar acertos internos, ciúmes inconfessos e ressentimentos guardados, querem imolar o jornalista William Waack, um sexagenário pardo, de sangue libanês, que ama falar alemão, cuja exuberância cultural resulta antipática para uns, elitista para outros, embora respeitável para todos. Dono de credenciais que honrariam qualquer redação no mundo, Waack é um luxo a que o Brasil precisa continuar se dando. Na verdade, se a Globo se curvar ao poder das redes sociais e aderir ao efeito manada dos raivosos, esvai-se o padrão de excelência do fundador, que contemplava não somente o esmero das produções, mas a altivez de tomar posições a contracorrente. De pouco servirá que ela venha a público dentro de 10 anos para se desculpar do erro cometido, como já fez a propósito da edição maliciosa de debates presidenciais e outros pecadilhos. Em tempo: quem se sentir burro diante do brilho alheio, que vá estudar. Apedrejar quem ousou pairar acima da mediocridade é um recurso vil. Se tudo vale pela audiência, passa da hora de estancar a histeria que ameaça o pacto brasileiro de convivência.
O caso de William Waack se presta a marcar uma virada em tanta pieguice. Ele é tão racista quanto eu sou xiita. Ou seja, zero.
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