Guerra santa
Se você está incomodado em não poder viajar no feriadão de Páscoa, saiba que Halem Guerra Nery (foto), 73 anos, vive uma reclusão compulsória durante a Semana Santa há praticamente 40 anos. E por motivos bem mais nobres do que qualquer proteção contra uma pandemia grave, mas passageira: o combate à infame farra do boi em Santa Catarina.
Referência estadual na tarefa inglória de enfrentar a prática, Ney e a mulher, Carmen, viraram reféns da missão que se impuseram – uma espécie de plantão permanente nos dias que antecedem à Páscoa, aguardando denúncias de farras de um lado a outro de Florianópolis e do interior do estado, não raro promovidas por políticos locais em busca do aplauso fácil de potenciais eleitores. E tome contatar promotores ambientais, policiais e imprensa na tarefa de reprimir o show de horrores proporcionado a título de "tradição" e "brincadeira".
(Palavras insidiosas, ambas, mas não as únicas. A ponto de obnubilar o julgamento de um Prêmio Nobel de Literatura, que recentemente prestou-se a defender touradas e outros costumes semelhantes do continente sul-americano ao tratá-los como "festas" e "espetáculos".)
Gaúcho radicado em Santa Catarina desde o início dos anos 1970, Nery foi apresentado às belezas naturais de Florianópolis praticamente ao mesmo tempo em que conhecia uma faceta nada admirável da capital catarinense e de parte de seu interior. "Pescadores passavam 25, 30 dias no mar. Voltavam na Semana Santa, vendiam a mercadoria e daí se entregavam à bebida alcoólica e à farra do boi. Levavam os filhos, os netos, os sobrinhos...E no domingo de Páscoa estavam na missa, se confessando", recorda ele.
Inconformado, iniciou uma cruzada com outros protetores locais. Passou a ser presença constante em prefeituras, câmaras de vereadores, promotorias, tribunais e delegacias de polícia. E enquanto tratava de coibir a farra no presente, pelo estímulo à criação de leis e a sua fiscalização, empenhava-se em desestimulá-la no futuro, com ações de conscientização nas escolas. Sabedor de que a luta também é travada na opinião pública, tomou a dianteira de ocupar espaços em rádios, TVs e jornais, até que a causa acabasse inevitavelmente associada a seu nome.
Gestor público aposentado, Nery dedica-se hoje integralmente a coordenar o Instituto Ecosul, voltado à educação ambiental e à proteção animal. Até quando persistirá na batalha? "Até os 100 anos", diz ele. "Depois, vou curtir a vida", emenda, brincando.
Mais algum tempo de luta será necessário, infelizmente. Uma rápida procura no Google sobre a farra do boi aponta que nem a quarentena foi capaz de desestimulá-la. Que dirá no próximo ano, em que a Semana Santa transcorrerá sob (provável) normalidade sanitária.
Bem, Halem estará a postos, aguardando seu telefone tocar, quem sabe para receber pela primeira vez uma boa notícia: "este ano não aconteceu nada".
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