Racionais S/A

Quem gosta de pobreza é intelectual – e de ativismo, classe média
Premiada pela MTV em 1998, os Racionais festejaram à vera nos bastidores da cerimônia em que receberiam o troféu. Mas na hora de subir ao palco, diante do público e das câmeras, trocaram os sorrisos por expressões fechadas e discurso político, a fim de manter a imagem de bad boys

O incensado documentário da Netflix sobre o grupo de rap Racionais MC's, que estreou em fins do ano passado, pode ter sido muito feliz em recuperar a trajetória artística e militante da banda, mas omite uma de suas facetas mais interessantes, a empresarial. Desde que o quarteto da periferia paulistana logrou sucesso comercial, passou a ser administrado como uma marca. E os louros e lucros advindos dessa postura parecem ter instilado nos músicos uma espécie de "ideologia da prosperidade" tão importante para narrar sua história quanto as conhecidas letras de protesto. Os primeiros sinais vieram no fim da década de 1990, quando a banda bateu à porta do mainstream. Premiada pela MTV em 1998, os Racionais festejaram à vera nos bastidores da cerimônia em que receberiam o troféu. Mas na hora de subir ao palco, diante do público e das câmeras, trocaram os sorrisos por expressões fechadas e discurso político, a fim de manter a imagem de bad boys, segundo o jornalista Ricardo Alexandre. 

"Os Racionais eram da vingança, do revanchismo social, mas obsessivos no controle de suas carreiras, nos detalhes, na embalagem (...)" escreve ele em "Cheguei bem a tempo de ver o palco desabar" (ed. Arquipélago, 2013, p. 128). A importância do storytelling para fomentar sua mitologia antissistema data daquela época: Alexandre menciona que, certa vez, a banda teria convidado a TV Globo para cobrir um evento seu apenas para ter o prazer de enxotá-la do lugar. Mais relaxado, Mano Brown, frontman da banda, há dez anos assumia que o Racionais era "um 'produto' – para quase qualquer plateia, em quase qualquer lugar", nas palavras da Rolling Stone brasileira de novembro de 2013. Daí que, naquele ano, o conjunto tivesse feito show em uma casa noturna sofisticada de São Paulo sem que o líder precisasse lançar mão da hipocrisia para narrar as tratativas com o contratante: 

"Estávamos ali para fazer negócio". Nada mais natural que, a partir de determinado momento, os quatro Racionais dessem vazão a empreendimentos pessoais, como uma confecção de roupas estilo hip hop, investimentos em ações e criptomoedas. A justificativa? Dinheiro é poder, e uma forma de inspiração, também. "Os negros crescem achando que o limite é ter uma casa própria e um carro, e que o mercado financeiro é coisa de branco. Eu quebro esse padrão", disse um deles à GQ em fevereiro de 2022. "Nós nunca propagamos 'não ganhe dinheiro'. Sempre falamos para não ter vergonha de onde vem. E a gente precisa deixar de ser 'negro cordeirinho', aquele que não fala nada, que aceita tudo. Chega. Tem de expandir, crescer", completou. A ascensão material deslegitima o discurso da banda? Não necessariamente.

Luís Fernando Verissimo afirmou certa vez que, para ser de esquerda, era preciso consumir um mínimo de calorias diárias – ou seja, apenas a superação das agruras da sobrevivência permitiria pensar criticamente. A seu modo, Mano Brown faz coro em trecho do documentário: "Eu não tinha nem chuveiro quente, como eu ia defender o povo?". Sua esposa, empresária dos Racionais, reforça: "Vai viver de ativismo? Ativismo é necessário, mas não paga conta", disse à GQ. Curiosamente, é o ativismo que tem se mostrado uma carreira potencial para parte da classe média com ensino superior, segundo o Valor Econômico (27/03/23). "Ninguém fica rico, mas dá para pagar as contas", disse um dos profissionais que optou por esse caminho. Os Racionais, porém, não querem apenas pagar as contas.

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Terça, 03 Dezembro 2024

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