O esporte é "falar mal"

Todos os meios profissionais têm suas idiossincrasias. Ademais de um jargão próprio e dos códigos silenciosos inerentes a realidades de alto contexto, prevalecem os cacoetes do ofício entre médicos, petroleiros, psicanalistas, jornalistas e mecânicos...
O esporte é "falar mal"

Todos os meios profissionais têm suas idiossincrasias. Ademais de um jargão próprio e dos códigos silenciosos inerentes a realidades de alto contexto, prevalecem os cacoetes do ofício entre médicos, petroleiros, psicanalistas, jornalistas e mecânicos. E em todos eles, temos uma cadeia mais ou menos nítida de hierarquias e de chaves de acesso a diversos patamares. Sempre na base mais ou menos universal de que quem pode mais, chora menos. E de que não se chega ao topo sem o apreço dos pares. 

Nesse contexto, de todas as ligas que integrei, ou pelo menos das que observei de perto, nenhuma é tão desconcertante quanto a da literatura. A perpassá-la, aquele fio tênue que liga os escritores de grei a seu mundo. A saber, aos pares, aos agentes, às editoras, às livrarias e aos leitores que, em última instância, são os grandes culpados das desditas e das glórias, mais das primeiras do que das segundas. Isso porque em todas essas dimensões, a ordem pode ser definida como sendo a de "falar mal". 


Senão, vejamos. A primeira instância desse mundo é aquela que une novelistas, cronistas, ensaístas e romancistas entre si. Gregários quase sempre, pois é daí que derivarão as informações que os manterão à tona, se três deles estiverem reunidos num café e se um vai ao banheiro, os dois que ficam – nem que seja pelo escasso tempo de o ausente urinar – demolem a criação literária do outro impiedosamente. "Quem ele acha que é? Kafka? Ou seria Dante? Viu a comparação que ele fez? "

É claro que escritores precisam de editoras. Nessa hora, constrói-se uma rápida unanimidade. As editoras abiscoitam o grosso dos lucros. Além do desplante de não responderem com presteza sobre a leitura de originais. O que fazer diante disso? Ora, os escritores precisam se unir para exigir o aumento dos direitos autorais. Na verdade, estão a pagar um preço alto pela desunião. Dali cada um sairá convencido de que é importante acessar uma grande editora porque acreditar no livro é tão somente distribuí-lo. 

Nesse contexto, as editoras pequenas também desfraldam a bandeira "unidas venceremos", todas elas no fundo alimentando o sonho de se tornar uma das grandes e de ser bajuladas por uma manada obediente de operários das letras. Quanto às editoras que já atingiram escala, estas falarão da má gestão das livrarias: "Não é à toa que as principais estão afundando. Ninguém pode viver só de dez títulos". Ou do governo: "Somos um país sem bibliotecas, Agora então piorou tudo".    

É claro que com a inadimplência das livrarias, toda a cadeia fenece e a queixa se generaliza. Se a livraria não paga à editora, como esta vai poder pagar ao escritor? Outro elo desconcertante é o dos escritores com seus agentes, quando existentes. "Os agentes dão calote em quem já não tem de onde tirar. Pode haver sadismo maior no mundo? Os caras te fazem assinar mil documentos, prometem que você será traduzido até em mandariam e desaparecem. É enfermiço". 

Tradutores e revisores talvez sejam as duas categorias mais bem preservadas. Mas é claro, se as vendas despencam, eles também ficam a ver navios. Na relação das maledicências, sobra até para os vendedores das livrarias, cada dia mais despreparados para exercer o ofício. Este é o mundo dos livros. Mas quando tudo vai bem, ele encerra muitos encantos. Mesmo que o esporte por excelência de seus atores seja o de falar mal. Mas parece que já era assim há muitos séculos.   

Quem já ouviu a história do encontro de Proust com Joyce em Paris? Outro dia eu conto.  

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Sexta, 13 Dezembro 2024

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