No abençoado terroir de Jesus

Acabo de regressar da experiência de viagem mais impactante de minha vida. Fui conhecer Israel. Uma viagem, aliás, que foi muito além de uma simples excursão turística, o que, por si só, já teria sido fascinante. Durante dez dias, junto com um grupo ...
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Acabo de regressar da experiência de viagem mais impactante de minha vida. Fui conhecer Israel. Uma viagem, aliás, que foi muito além de uma simples excursão turística, o que, por si só, já teria sido fascinante. Durante dez dias, junto com um grupo de amigos, ciceroneados por guias especializados, percorremos o país de norte a sul participando de um curso de Arqueologia Bíblica.

Trata-se de um projeto organizado pelo Moriah International Center, com chancela da renomadíssima Universidade Hebraica de Jerusalém (nove prêmios Nobel no currículo), que se materializa em um roteiro cultural e espiritual pelos principais sítios históricos e arqueológicos retratados no Velho e Novo Testamentos. É uma nova forma de peregrinação, que objetiva, à luz do estudo e do exame de ruínas, edificações, artefatos e detalhes geográficos, vislumbrar como era a vida na Terra Santa dos tempos bíblicos e confirmar a exatidão do conteúdo das Sagradas Escrituras.

Ainda nos preparativos da aventura, os amigos com os quais compartilho fiel devoção a Baco fizeram coro na inevitável recomendação, quase uma ordem: não deixe de beber os vinhos de Israel.  Um dos confrades mais enfáticos foi o estimado Marcos Graciani, incluindo em seu apelo a intimação para que, ao regressar, eu relatasse ao blog Cepas & Cifras as experiências viníferas vividas na jornada. Obviamente, eles nem precisavam insistir. Degustar alguns rótulos israelenses já estava nos planos.  E como qualquer jornalista que aprecia bons vinhos jamais foge à luta, cá estou para contar um pouco do que vi, provei e senti.

A relação do povo judeu com o vinho vem de tempos imemoriais. A bebida é personagem fundamental na história, nas festividades e nos rituais religiosos. É citada na Bíblia em torno de 450 vezes. Duas dessas passagens tornaram-se pilares centrais da fé cristã: as Bodas de Canaã, quando Jesus realizou seu primeiro milagre ao transformar água em vinho, e a Última Ceia, onde Ele faz do vinho o símbolo de seu sangue.

Dito isso, podemos economizar bastante tempo e espaço para falar agora da vinicultura israelense nos dias atuais. Historicamente, nos conta o Infovinho, Israel possui uma das mais antigas áreas viticultoras do mundo, mas só na década de 1880 o barão Edmond de Rothschild montou a primeira vinícola e estabeleceu uma indústria moderna no país.  Ainda assim, Israel ficou bem atrás do resto do mundo. Assolada por guerras e instabilidade durante décadas, a atividade foi negligenciada e restringiu-se a fornecer à população mundial de judeus ortodoxos apenas vinho kosher (produzido segundo os rituais judaicos), e basicamente de uma única cepa, a Carignan. 

Finalmente, nos anos 80, uma importante revolução de qualidade começou a ganhar impulso: o plantio em grande escala de muitas variedades internacionais e investimentos maciços em tecnologia de ponta permitiram ao país extrair o melhor de seu terroir. Como as cepas autóctones se extinguiram, as mais cultivadas hoje são Cabernet Sauvignon, Chardonnay, Merlot, Sauvignon Blanc, Cabernet Franc e Muscat importadas. Conhecimentos externos, principalmente da Califórnia, também deixaram sua marca, conferindo a muitos vinhos da região clara assinatura do Novo Mundo.

A indústria israelense ainda é principiante, mas tem mostrado talento e apresentado vinhos promissores que já chamam a atenção de muitos países. Ao sul da fronteira com o Líbano, a Galileia (Tiberíades) é a região vinícola mais importante em termos de qualidade e inclui os distritos de Baixa Galileia, Alta Galileia, Colinas de Golan (a área mais fria de Israel) e Tabor. 

Os vinhedos mais ao norte das Colinas de Golan ficam até 1.200 metros de altitude; na Alta Galileia, estão a cerca de 700m. No inverno é comum nevar nos pontos mais altos da região, e o calor do verão é temperado pelo vento frio do Monte Hermon, o que, combinado à longa exposição solar, confere aos frutos concentração difícil de se encontrar em outras áreas do país.  As vinhas que mais se beneficiam das fantásticas condições da Galileia são Cabernet Sauvignon, Merlot, Syrah, Chardonnay, Sauvignon Blanc e Muscat.

Ao sul, na planície costeira do Mediterrâneo, a Samaria (Shomron) é a maior região vinícola de Israel. O clima tipicamente mediterrâneo torna os melhores vinhos elegantes e de aroma intenso.  As principais cepas brancas são Chardonnay e Sauvignon Blanc, e as tintas, Cabernet Sauvignon e Merlot. Elas reaparecem mais ao sul, em Sansão (Shimshon), onde os vinhos brancos tendem a ser encorpados e intensamente frutados, e os tintos, grandes, densos e robustos.

No interior, as Colinas da Judéia (Harey Yehuda) ainda não estão muito desenvolvidas e possuem alguns vinhedos ao norte de Jerusalém, em terraços ou vales estreitos de solo fino, limoso e pedregoso que resulta em exemplares excepcionais de vinhos ao estilo do Velho Mundo, sendo os melhores os brancos tipo Borgonha e os tintos tipo Bordeaux, que servem aos vinhos doces para fins religiosos (kosher).

Escolhi o simpático restaurante Rimônidas, no bonito e agitado centro da parte moderna de Jerusalém, para apresentar-me aos vinhos israelenses.  Como até então nunca tinha provado qualquer rótulo do país, foi uma espécie de degustação às cegas. Elegi para jantar um delicioso badejo com batatas, assado na brasa. Para acompanhá-lo, resolvi apostar em duas cepas da vinícola Gamla e pedi meia-garrafa do Chardonnay 2013 e meia do Cabernet Sauvignon 2010.  A linhagem top desse produtor é o premiadíssimo Yarden, que, infelizmente, não estava disponível na carta. De qualquer forma, ambos superaram as expectativas e harmonizaram perfeitamente com o prato, honrando com louvor a fama das colinas de Golan como a região que produz os melhores vinhos do país.

O branco tem tons de lima brilhante, sabores de limão, melão e personagens de frutas tropicais, equilibrado com notas de flores frescas e carvalho francês, muito refrescante e saboroso. O tinto traz groselha preta, toques de cereja, especiarias e notas de carvalho francês. Tem bom corpo e um final satisfatório. Embora pronto para beber agora, ele irá envelhecer bem na garrafa durante cerca de seis a oito anos de vintage. Devo destacar também o ótimo Chardonnay 2011 da Mony, uma vinícola-butique instalada nas colinas da Judeia, perto de Bet-Shemesh. Provei-o em um inspirador e descolado restaurante do elegante shopping Mamilla. Vem de vinhas selecionadas e chega à mesa após oito meses envelhecido em barricas de carvalho francês. Expressa-se através de notas de mel, pera e baunilha, aromas e sabores cítricos, com delicioso acabamento mineral.

Para encerrar, volto a Jesus Cristo com a pergunta que não quer calar: como era a qualidade do vinho que o Mestre bebia? Definitivamente, comparada à bebida que conhecemos hoje, não passava de uma rudimentar beberagem. Sejamos justos: séculos de avanços tecnológicos separam uma coisa da outra. Acontece que o vinho daquela época, pelo menos em Israel, era muito mais fraco por causa da adição de água e da fermentação natural da bebida. Açúcar e fermento não eram adicionados ao vinho e o seu teor alcoólico, portanto, permanecia bastante inferior aos índices de graduação a que estamos acostumados atualmente. Pelo que se sabe, as uvas teriam uma grande quantidade de açúcar em razão do clima quente e seco. Como não usavam aditivos, a fermentação dependia apenas da ação da natureza, que não era suficiente o bastante para converter todo o açúcar em álcool. Logo, fora o baixo conteúdo alcoólico, o vinho seria também doce em razão do açúcar não convertido. O vinho de Israel dos tempos bíblicos era exportado, entre outros países, para o Egito.

Segundo o crítico e historiador Daniel Rogov, “era tão ruim que tinha que ser temperado com mel, pimenta e zimbro”. Os que chegavam a Roma, assegura ele, “eram tão espessos e doces que nenhum crítico moderno o aprovaria”. Se o vinho dos tempos de Jesus era ruim, o terroir, pelo menos, só aguardava a evolução das técnicas de cultivo e vinificação para revelar todo o seu abençoado potencial.

Como se vê, Cristo segue fazendo milagres.

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Quarta, 11 Dezembro 2024

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