Friedrichstrasse

Na quinta-feira cheguei à estação berlinense de Friedrichstrasse e caminhei até minha livraria preferida, a Dussmann. Dado o adiantado da hora, não tinha a opção de fuçar as prateleiras nem tampouco a de conversar com os vendedores excepcionais, que ...
Friedrichstrasse

Na quinta-feira cheguei à estação berlinense de Friedrichstrasse e caminhei até minha livraria preferida, a Dussmann. Dado o adiantado da hora, não tinha a opção de fuçar as prateleiras nem tampouco a de conversar com os vendedores excepcionais, que têm dicas preciosas na ponta da língua sobre quase tudo. Reconfortado com o aviso dependurado que dizia que a loja estará aberta no domingo, fui direto a meu compromisso, esperando de lá sair para tomar uma sopa no café Einstein, antes de seguir para o distante hotel. Mas foi à saída que um livro de fotografias me chamou a atenção. E mal sabia eu que ele mudaria o curso daquela noite. 

O que havia nele de excepcional? Tudo e nada. Tudo porque eram lindas as fotografias de Berlim, tal como existia nos tempos do Muro. Vendo a longa faixa de terra que a separava em duas na altura do Portão de Brandemburgo (foto), senti um raro frisson em saber que apenas dez minutos de caminhada me separavam daquele  endereço que é um marco na história do mundo. E nada porque livros assim temos às dúzias e nenhum detalhe nele deveria ter me chamado a atenção de forma especial. Salvo, talvez, por um discreto cromo. E este mostrava um rapaz parado em contemplação ao antigo Reichstag, mãos nos bolsos e uma sacola quadriculada dependurada a tiracolo. Quem era? 

Ora, bastou verificar a data – fevereiro de 1976 – para identificar meu amigo Dr. Stamapoulos, da Grécia, um colega do Goethe-Institut de Rothenburg-ob-der-Tauber. Médico formado em seu país, tinha vindo fazer uma longa especialização na Alemanha e tinha infinita paciência com minhas perguntas sobre Salônica, sua cidade de origem. Na data aludida, lembro que ele faltou dois dias de aula porque viera visitar a irmã que vivia aqui em Berlim. Na volta, contou-me que visitara Berlim Oriental e que a cidade lhe causara uma viva impressão...negativa. "É melhor que nossos amigos não saibam. Mas te juro que saí de lá louco para ver luzes e tomar uma cerveja. É deprimente". 

Poucos meses mais tarde, tão logo tive a primeira brecha na primavera, eu mesmo fiz o trajeto que Stamapouolos fizera. E lembro de ter escrito ao amigo, então já em Heidelberg, que eu também tivera uma impressão lúgubre da vista de um dia que tinha feito. "Mas fiquei impressionado com os livros baratos, Alexis". Ele escreveu na resposta: "Mas francamente, o que importa o preço do quilo do livro se você só pode ler o que eles querem?" Era uma verdade singela, dita por um homem que tinha então dez anos a mais do que eu. Mas que me angulou a visão de um estado de fato que eu tinha muita dificuldade em aceitar. Afinal, o sonho do Socialismo era um ideal de família. 


Saí da Dussmann com a sensação de que resgatara uma parte de minha história. E tive muita saudade de meu bom amigo grego que hoje deve ter seus 70 anos. Será que voltou à sua Grécia natal ou virou alemão de vez? Pensei em gastar os 90 euros para ter o livro à minha cabeceira, mas afinal decidi que volto lá amanhã e, discretamente, tiro uma foto da foto. Se o localizar – como pretendo – tenho certeza de que ele vai gostar de se ver flagrado num momento revelador de sua juventude. Foi no rastro dele que metabolizei uma primeira decepção que, convenhamos, podia se confundir facilmente com os enlevos de um adolescente para quem o prazer vinha antes de tudo. 

Hoje, mais uma vez, me darei ao prazer de deambular naquela zona próxima à embaixada dos Estados Unidos, não longe da russa, onde uma parte importante de minha vida tomou forma. Sim, é um privilégio vir a Berlim de vez em quando. Não é só uma chance de reeditar os momentos dramáticos que o mundo viveu. Mas também de se olhar no espelho do tempo e ver que as paisagens são como os perfumes: gatilhos poderosos para abrir portas que jamais poderão ser totalmente fechadas. Mesmo porque foi por elas que entrou o vendaval da descoberta, a aragem do conhecimento vivido e o prazer indizível de descobrir o mundo com os próprios pés. 

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Quinta, 12 Dezembro 2024

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