China: 30 anos depois

Cercado de chineses, jantei na terça-feira numa marisqueira lisboeta. No alto do salão amplo, pontificava uma enorme televisão e as imagens mudas tinham tudo a ver com a vida daqueles comensais ruidosos que se esbaldavam roendo copiosas sapateiras e ...
China: 30 anos depois

Cercado de chineses, jantei na terça-feira numa marisqueira lisboeta. No alto do salão amplo, pontificava uma enorme televisão e as imagens mudas tinham tudo a ver com a vida daqueles comensais ruidosos que se esbaldavam roendo copiosas sapateiras e chupando com prazer a sopa de frutos do mar. Isso porque as transmissões se referiam ao trigésimo aniversário da repressão aos manifestantes da Praça da Paz Celestial, em Pequim. 

Lembro com nitidez da cena mais marcante daqueles dias. Estava eu em Manchester, norte da Inglaterra, e me barbeava diante do espelho. Num momento de distração, vi o reflexo de um homem que parecia executar uma divertida coreografia com um tanque militar. Parado diante do veículo, ele se deslocava cada vez que o soldado tentava desviar. Chapliniano na essência, quem era aquele indivíduo que ousava desafiar o colosso repressor? 

Nesse momento, sentei na cama e fiquei assistindo repetidas vezes à cena que corria mundo, numa época em que as imagens não "viralizavam" como hoje. Ainda assim, estava claro que ali fora dada a senha para que a mão pesada do regime reprimisse os manifestantes. Espécie de movimento de contração, aqueles dias marcaram um retrocesso aparente, do qual a China nunca ficou curada totalmente. A despeito disso, o progresso econômico abafou as vozes dissidentes. 

Pois bem, a cena que revi em Lisboa parecia não causar espécie nos muitos chineses que estavam por ali. Mais interessados em degustar vinho verde e comentar sobre as compras, boa parte daquela gente estava apenas nascendo quando o herói anônimo dançou diante do poderio do partido único. Pragmáticos, os chineses fecharam os olhos às manifestações que aconteceram em Hong Kong. E parecem seguros de que enquanto houver arroz no prato, a democracia pode esperar. 

Quanto a mim, das vezes que voltei desde então à praça mítica, nunca mais deixei de contemplar, ali bem à porta da Cidade Proibida, o local exato onde aconteceu aquele inusitado "pas de deux".  

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Quinta, 12 Dezembro 2024

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