Cem Anos de uma tragédia

O outono na Alsácia estava ameno até o entardecer do domingo. Mas então, o vento soprou na praça da catedral de Estrasburgo e espalhou as folhas secas com seu hálito gelado, desses que costumam dar as boas-vindas à História. Foi nessa hora que diante...
Cem Anos de uma tragédia

O outono na Alsácia estava ameno até o entardecer do domingo. Mas então, o vento soprou na praça da catedral de Estrasburgo e espalhou as folhas secas com seu hálito gelado, desses que costumam dar as boas-vindas à História. Foi nessa hora que diante da Guarda Republicana, o presidente Macron e a esposa Brigitte foram recebidos com aplausos discretos, como convém aos mais germânicos dos franceses. Pouco depois, assistiram ali mesmo a um concerto em que, não por coincidência, Debussy e Beethoven reinaram soberanos. Isso porque, ao lado dos anfitriões, estavam Frank-Walter Steinmeier, presidente da Alemanha, e primeira-dama. Há de se imaginar que o fato de a cerimônia acontecer em Estrasburgo não foi fortuito. Cidade símbolo do tumultuado histórico franco-alemão, pude assistir à celebração do centenário do Armistício que marcou o fim da Primeira Guerra Mundial, por muitos tido como o mais absurdo dos conflitos, a considerarmos que exista outra categoria que lhes atenue a crueldade (na foto, tropas marcham em Londres após fim do conflito, em 1918).

A despeito de não ter vínculo emocional com os eventos, salvo por reminiscências alheias de velhos almoços domingueiros ancorados no século passado, senti-me conectado àqueles homens vergados pela idade, escorados em andadores, de modos trêmulos e com condecorações militares penduradas na lapela, cujos olhares reluziam à lembrança de parentes que morreram nas guerras que dilaceraram a região. A poucos quilômetros do rio Reno, e das casamatas da linha Maginot, terminei assistindo a uma eloquente celebração à paz. Nesse contexto, a Alsácia é terra singular. Quando estou aqui, não me sinto na França. Não que lhe faltem os cafés de toldo vermelho, o gosto pelo vinho e o amor à polêmica. Mas algo no casario compacto remete à Alemanha, embora ela só comece um tantinho adiante, na pequena Kehl, a que Estrasburgo está ligada por bonde urbano. É quando se ouve o dialeto alsaciano, contudo, que aflora a prova tangível da peculiar identidade da terra.  

Tudo isso somado me ajudou a vencer a modorra domingueira. Por paroxismo, pensei na Catalunha, cuja devoção ao separatismo provoca antipatia em tantos, a começar por mim. Em escala maior, como não pensar no retrocesso que significou o Brexit? No momento em que 1400 advogados se unem para pedir a Theresa May que promova novo referendo em torno do recuo do Reino Unido da União Europeia, é forçoso reconhecer que a Europa está precisando de torcida. Começada a contagem regressiva para a saída de Angela Merkel da ribalta política, caberá a Macron reger o projeto do bloco. Seja como vier a ser, vendo o olhar marejado dos anciãos, dei-me conta de que a paz não é uma abstração vã. Caminhando para casa na noite fantasmagórica, pensei na voz entrecortada que sussurrou atrás de mim: "O vovô morreu a minutos do Armistício. Saiu da trincheira para fumar e levou um tiro. Mamãe nasceu no Natal, semanas depois. A dor da perda nunca cicatrizou". Vozes do ontem, alertas para o amanhã. 

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Domingo, 15 Dezembro 2024

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