Sobre mães que perderam filhos
No rescaldo da morte de Ricardo Boechat, assomou a integridade de uma figura gigantesca. Como se fosse a acionista oculta da maior das obras – um filho –, eis que D. Mercedes fez o que pode para conter as lágrimas, para ser maior do que a tristeza abissal e, diante do corpo do filho, desfraldou algumas das bandeiras que lhe eram caras. Confessando-se ela própria na "reta final" em seus 86 anos, nunca tantos milhões de brasileiros amaram tão intensamente uma argentina nativa, de leve e charmoso sotaque portenho, nos minutos da mais incongruente das despedidas, aquela em que a mãe fica no cais, e é o filho quem some na bruma espessa do nunca mais. Alguém já disse: é tão absurdo que sequer nome para isso existe. Um menino que perde a mãe é órfão. E o contrário, o que será a mãe? Não se sabe.
Nesse contexto, conversei certa época com um amigo psicanalista sobre a dor que se abatia sobre uma amiga que perdera um filho. Nunca vou esquecer suas palavras. Pesando cada uma delas, disse: "Nessa mesma cadeira onde você está sentado já passaram muitas mães e pais nessa situação. O que eu posso dizer é que nós, homens, não temos o equipamento biológico para avaliar a intensidade dessa dor. Elas, as mães, podem até aparentar uma recuperação boa, uma superação surpreendente. Mas não é raro que um dia, sem mais nem por que, essa dor aflore a partir de um nada...um filme, uma música, uma cena de rua, uma festa. Então ela pode chegar aqui com a cabeça toda branca, sem aparentar nenhum dos ganhos terapêuticos que eram dados como certos e adquiridos. Nem queira pensar".
Mães que perderam filhos, conheci-as em várias partes do mundo e em diferentes gerações. Lembro de D. Josepha Coelho, lá de Petrolina, uma pessoa feita de força e doçura. Quando lhe fui apresentado já sabia que as águas do São Francisco lhe haviam tragado um filho amado, ao passo que outro falecera num desastre. Em Paris, há poucos anos, conheci um casal de Clermont-Ferrand que perdera a linda filha para um avassalador câncer hepático que a levou aos 25 anos. Inconformados, deixaram para trás a vida na província de que tanto gostavam e se estabeleceram em Paris, ao lado do cemitério, onde vão visitá-la dia sim e outro também. Na casa deles, há temas proibidos, músicas interditas, datas terríveis e o olhar triste de um cão que parece absorver aquela ausência inexplicável, mas palpável.
Vendo os filmes que foram levados ao ar e que mostram o brincalhão Ricardo Boechat em conversas com a mãe, o que se depreende é o riso cúmplice, a irreverência de que se nutria um afeto igualitário e sem barreiras. Na televisão, são muitas as mulheres que já passaram por isso: Christiane Torloni e Ciça Guimarães são só algumas das mais notáveis. Penso muito nessas horas naquelas mães russas que se despediam dos filhos durante a Guerra, tendo como único consolo a esperança de poder reaver seus corpos um dia, já que a morte era quase certa. Em todas as mães, ilustres ou desconhecidas, haverá de se notar mais cedo ou mais tarde uma marca identitária que parece assinalar um antes e um depois. Para D. Mercedes, espero que o abraço de toda uma Nação lhe traga algum conforto para a chamada dor das dores.
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