Os órfãos de Pinochet
A semana passada foi fértil em aprendizado. Aliás, é o único que peço delas – que continuem a me ensinar. O que mais pode almejar um homem para quem os prazeres mundanos já deram uma cota substancial de tempero à vida? Mas vamos aos fatos. Um deputado estadual por São Paulo, que por acaso conheço – e de quem gosto pessoalmente, embora divirja de sua orientação política – teve a infeliz ideia de propor que a Assembleia Legislativa local rendesse uma homenagem ao general Pinochet – uma figura do rodapé da história, e que pontifica hoje muito mais como torcionário e ladrão do que como o homem que livrou o Chile das garras do comunismo, como pretende o parlamentar.
Critiquei em público o gesto – não acho que parlamentares estejam lá para render homenagens, senão para destravar o Estado – embora tenha obtemperado que o deputado, ainda que não o pareça, é mais do que um panfletário. Na sua vertente séria é, aliás, um empedernido defensor do agronegócio brasileiro e exerce expressiva liderança. Por que entrar no jogo de seus adversários e fazer picuinha em cima de uma ignomínia? Não há forma melhor de ganhar visibilidade? Claro que há. Pois bem, conversando com um chileno que mora aqui em Paris há décadas, contei-lhe das reações que provoca o nome do velho ladravaz na consciência coletiva do Brasil. Por que seria?
Identificamos quatro razões básicas – todas com peso similar –, relevando sempre que o pobre Salvador Allende, uma figura chapliniana, estava manietado por todos os lados: pela CIA, pelos caminhoneiros, pelos amigos e pela depressão. O primeiro fato é que 1973 foi um ano em que boa parte das cabeças pensantes (e não pensantes) de hoje estava no auge da adolescência, ou eram jovens adultos, portanto, suscetíveis à truculência vizinha, que nos atingia de raspão. Segundo, Pinochet encarnava o milico sul-americano do clichê: óculos escuros, cheio de medalhas e ameaçador, tendo desencadeado uma repressão brutal que ceifou artistas e estudantes, fazendo de um campo de futebol uma espécie de "Lager", na pior conceituação nazista.
Em terceiro, concluímos, a ditadura argentina, que fez dez vezes mais vítimas, por ter sido composta de juntas e de diferentes faces – embora Videla tenha sido a mais proeminente –, não teve a componente autoral da chilena. No Brasil, perdemos um Boeing 747 de vitimas diretas, ou seja, umas 350 pessoas. No Chile, todos os passageiros de um grande cruzeiro, com 3 mil almas. Na Argentina, foi a quantidade de gente média num clássico River Plate versus Boca Juniors – 30 mil. Já Stálin, para ilustrar, matou o equivalente à população da península Ibérica, e os ditadores do mundo árabe dizimaram o equivalente à população escandinava. Mao enviou à morte centenas de milhares e Pol Pot usou de uma crueldade que faria corar Stroessner.
Ora, Pinochet não é consenso sequer no Chile, tendo lá gente que o aplaude. Queridinho de Margareth Thatcher, o velho general é uma boa peça para sustentar uma narrativa. Daí os inúmeros – bote gente nisso – "haters" de internet que acendem as narinas e se enrolam em bandeiras quando se fala nele. Nada disso atenua a "boutade" do deputado de querer render homenagens, seguindo uma linha propugnada por Bolsonaro lá em Santiago, e de pronto desautorizada pelo colega chileno. "Pinocho", como é conhecido lá, provoca mais urticárias do lado de cá dos Andes. Por que será? Porque é mais fácil criticar o cisco no olho alheio, segundo a Bíblia. Afinal, quem tem aqui o que nós temos, não precisa importar fantasmas. Mas isso é humano. E nada do que é humano, nos deve ser indiferente.
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