Os altos-fornos de Bratislava

Meio século mais tarde, eis que de novo a política nos pauta. E muitos torcem para que tudo piore para poder expurgar o mal pela raiz
Não foi Brasília que fabricou a pandemia, e era óbvio que teríamos baixas consideráveis mesmo porque temos uma das grandes populações do mundo

De Paris (França)

Dia 21 último, festejamos o cinquentenário do tricampeonato no México. Vivi então, aos 12 anos, um momento de felicidade tão pura que só a comparo à que senti pelo hexacampeonato do Náutico, um feito equivalente à Queda do Muro de Berlim. Mas naquela Copa de 1970, tudo começou esquisito. De birra com o regime militar, em que via poucos méritos, papai dizia que estava torcendo contra o Brasil. Demais, na pedagogia dele, se perdêssemos de cara, a derrota teria bom efeito educativo sobre mim e meu irmão. Se a Seleção voltasse mais cedo para casa, eu deixaria de me impressionar pelo futebol, uma preocupação que não estava à altura dos planos grandiosos que ele traçara para mim. Assim, quando Petras marcou 1X0, no jogo contra a Tchecoslováquia, papai se levantou para aplaudir o loirinho artilheiro. Parecia que teríamos vida curta na competição. "Esse camarada é mais jogador do que Pelé. Por que? Porque o socialismo lhe garantiu os estudos. Lá, nem futebol profissional tem, todos são amadores. Mesmo porque ganhar a vida chutando uma bola é uma indignidade. Vá ver que ele é engenheiro, e trabalha nos altos-fornos de Bratislava."

Seria verdade? Será que nem preparação eles tinham feito? "Que nada. Petras estava passando pela rua, soube que estavam montando um time para ir ao México e topou ir de férias. É um craque sim: em física, química, matemática, russo. Agora esses nossos aqui, que são analfabetos, que gazearam aula para jogar bola, vão levar uma goleada histórica. Sóo estudo edifica, só a educação nos transforma." Mas de repente, numa explosão da mais pura euforia, papai berrou um "gooooool". Rivelino fez um golaço e ele correu para a varanda para soltar um rojão de 12 tiros sobre o telhado da fábrica da Antárctica, na Rua da Aurora.

Enquanto se servia de mais um drinque ("é para dilatar as coronárias", dizia) até os vizinhos ligaram para saber se estava tudo bem. Onde se viu? "E o socialismo, papai?" Ele desconversou. "Não estou torcendo pelo Brasil, não adianta, ele vai perder. Só achei o gol bonito. Não posso?" Naquela tarde, ele acharia os quatro gols lindos. Dali em diante, uma revolução se operou dentro de mim. Adultos não eram nem confiáveis nem coerentes. Adultos eram volúveis feito crianças e viravam a casaca com a maior desfaçatez. Mas podiam ser muito divertidos nas suas contradições.

Meio século mais tarde, eis que de novo a política nos pauta. Ou seja, muitos torcem para que tudo piore para poder expurgar o mal pela raiz. Mas a fatura fica impagável quando a incúria do poder Executivo, eleva as mortes pela Covid-19 a um patamar de óbitos equivalente a 25 vezes nossas baixas na Segunda Guerra; a três vezes os mortos na Revolução Farroupilha; ao dobro de Canudos, e a todos os mortos que contamos na Guerra do Paraguai. Não foi Brasília que fabricou a pandemia, e era óbvio que teríamos baixas consideráveis mesmo porque temos uma das grandes populações do mundo. Creditem-se metade delas, contudo, ao descalabro que foi a condução da crise sanitária – o que nos dá um triste e vergonhoso troféu mundial. Sem foco de agenda, o Executivo transforma o Brasil num estado-pária. Nossos passaportes serão dos últimos a franquear acesso a seus portadores aos demais países. Nossos números são alarmantes, e era óbvio há dois meses que era uma questão de tempo até que chegássemos à vice-liderança mundial em número de óbitos. O que não podemos é torcer pelo alastramento dessa calamidade como forma de submeter a presidência a desgastes.

Nesse capítulo, não se trata de gols, senão de vidas. Mas algo me diz que vai ser difícil reverter o placar. Dessa vez, estamos perdendo de goleada. O que faz a torcida de meu pai, 50 anos depois, soar ingênua, quase romântica.

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Domingo, 15 Dezembro 2024

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