O último Carnaval

Eu tinha varado a noite em Olinda e a brisa do amanhecer começava a debelar a ressaca. Convinha dormir um pouco para retomar a festa no domingo. Mas ora, se fosse para casa, perderia o embalo. Peguei um táxi na Praça do Carmo. "Toque para o terminal ...
O último Carnaval

Eu tinha varado a noite em Olinda e a brisa do amanhecer começava a debelar a ressaca. Convinha dormir um pouco para retomar a festa no domingo. Mas ora, se fosse para casa, perderia o embalo. Peguei um táxi na Praça do Carmo. "Toque para o terminal de Boa Viagem". Nada tinha a fazer lá. Queria só cochilar e levar um ventinho reparador. Daí ter pedido a distância maior que me ocorreu. Num átimo, chegamos. "Já?" O motorista assentiu. "Demorou foi muito. Mas o senhor dormiu logo". Antes que ele levantasse a bandeira, atalhei: "Voltemos para Olinda, meu caro". E cochilei de novo, contando que pegássemos um engarrafamento. Um nada depois, lá vem o cutucão: "Chegamos". Eu não me conformava, o sono estava no melhor momento. "Vamos de volta para Boa Viagem". Contrariado, ele obedeceu. Só que desta feita, parou numa guarita da Polícia Militar. Acordei sob a sombra de uma dupla de homens fardados de aspecto ameaçador.  

"O que está havendo?", perguntou um deles. "Nada, estamos só passeando, ora. O que há de errado?" Sem jeito, o mais alto deles disse: "O motorista está preocupado. A corrida ficou cara e o senhor está sem destino". Puxei umas cédulas e, ainda meio embriagado, fui magnânimo: "Não seja por isso. Isso é para vocês tomarem uma cerveja na folga. É de coração, aceitem. Afinal, o Carnaval é para todos". Agradecidos, os policiais olharam com dureza para meu algoz: "E você ainda fica chorando de barriga cheia, rapaz. Não está vendo que o doutor é um homem de bem. Parece que é idiota". O chofer de praça perdeu o rebolado. De moral elevada, dei o novo rumo: "De volta para Olinda, meu caro". E assim fizemos. No trajeto, não dormi e trombeteei façanhas e conquistas arrebatadas. Recuperado, caí na farra domingueira numa época em que amava como poucos o Carnaval. Mas os incidentes não terminariam com a dupla de policiais.   

Digo isso porque enquanto me abastecia de uísque no Largo do Amparo, um passante bateu no meu ombro: "Gordinho, dê uma segurada no porre hoje porque ontem precisamos de quatro homens para te levantar". Fingi indignação, onde já se viu? "Deixa de conversa mole, rapaz...não está vendo que você está me confundindo com alguém?" Enfático, ele rebateu: "Por que inventaria? Você não é Fernando? Não mora em São Paulo? Não brigou com uma namorada de Bezerros, uma loirinha de olhos azuis?" Fiquei sem ação. "Vamos tomar uma dose, me desculpe. E chame a galera que me levantou para confraternizar". Ele não podia. "Era só gente de passagem, nem os conheço". Emocionado, senti que fora literalmente salvo do vexame maior pelos braços do povo. Na madrugada seguinte, fui descansar em Ponta de Serrambi e não voltei mais. Meu tempo de Carnaval tinha ficado para trás. Se era para vivê-lo com moderação, é porque não era mais para mim. A cobra mudara de pele.

Veja mais notícias sobre Memória.

Veja também:

 

Comentários:

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Visitante
Quinta, 21 Novembro 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://amanha.com.br/