Mazal Tov: as alegrias de uma descoberta

Esse livro é um libelo pela diversidade e pela força propulsora da boa leitura
Universitária, ainda nos anos 1980 Margot Vanderstraeten tinha trabalhado como professora particular das quatro crianças de um lar de judeus ortodoxos

Quando a pandemia arrefeceu e eu voltei da Europa, trouxe na bagagem um livro chamado Mazal Tov (Editora AzuCo, São Paulo, 392 págs., R$79), da conhecida jornalista belga Margot Vanderstraeten (foto). Universitária, ainda nos anos 1980 ela tinha trabalhado como professora particular das quatro crianças de um lar de judeus ortodoxos. Ora, já então isso não era um feito comum. Como podia uma não-judia, enfiada numa minissaia, liberal e fumante, ter sucesso na missão? Para completar o quadro de inverossimilhanças, pasmem, vivia com um muçulmano iraniano, de nebulosa militância política...

Li o livro em dois dias dos 400 que passei em Paris à espera da vacina contra Covid. Não se tratava de um relato puramente jornalístico. Longe disso, tratava-se de uma auto ficção muito bem narrada que desvelava por dentro a vida da fechada comunidade dos judeus ortodoxos do setor diamantífero de Antuérpia, Bélgica. Mais do que tudo, havia ali emoção, choque cultural e descoberta todos esses elementos pautados pelo recato de uma cidadã do norte da Europa que não era necessariamente espontânea, embora soubesse ser opinativa e firme nas convicções. Algo ali me fez pensar.

Dou um exemplo. Se, por um lado, os sobreviventes do Holocausto, na pessoa da anciã Gabriella Pappenheim, lhe inspiravam todo respeito do mundo, ela não negava para o patriarca que se condoía com os palestinos, que pareciam enfrentar, na virada do século, os mesmos sentimentos de exclusão por que passaram os judeus ao longo da história. Tinha mais: como se explicava que uma família próspera e culta, observasse práticas alimentares que proibiam que se misturasse queijo e carne para atender a um mandamento milenar, que certamente não antevira a revolução do cheeseburger?

Mazal Tov (Boa Sorte, em hebraico) trouxe à baila passagens que lembravam A Noviça Rebelde ou mesmo O Violinista do Telhado. O primeiro, como sabido, é um clássico romântico que levou centenas de milhões ao cinema em que Julie Andrews protagonizava uma figura externa à família que reequilibra as emoções desarticuladas. Margot Vanderstraeten ajuda a fazer o mesmo no lar austero. No segundo caso, a exemplo do leiteiro do filme, o patriarca também quer casar bem os filhos e se assegurar de que a tradição será mantida. Tudo isso num quadro cosmopolita e multilinguístico.

São dezenas as situações que esse convívio suscita. Se alguém subestima o papel da percepção intercultural na vida contemporânea seja em que terreno for, até nos negócios Mazal Tov é um libelo pela diversidade, pela alteridade e, no caso, pela força propulsora da boa leitura. Picado por essa convicção, tentei interessar alguma editora a publicar o livro. Foi a pequena AzuCo, de São Paulo, quem partiu na frente para encarar a empreitada. E embora eu não esperasse por isso, a autora pediu que eu me encarregasse da tradução, no que foi acatada.

O fato é que, contrariando a crença generalizada de que o brasileiro não lê, Mazal Tov não esperou muito para encontrar o seu público. Duas semanas depois de chegar ao mercado, o livro já está distribuído nacionalmente e a editora anuncia lançamentos em três capitais (Porto Alegre no dia 16/5, São Paulo em 18/5 e Rio de Janeiro em 23/5) com a presença da autora. Qual a magia de uma boa história? Ninguém sabe. Harry Potter quebrou expectativas e paradigmas! Recusado 12 vezes antes de ser acolhido por uma editora, fez história pelo inusitado e pelo texto.

Mazal Tov, se merece crédito o que diz este modesto tradutor, é um desses casos em que o público leitor perpassa uma gama muito ampla de interesses. Dos 15 aos 100 anos, é insubstituível para todas as faixas que precisam redescobrir os prazeres da leitura. A dispersão induzida pelas redes sociais nos afastou dos livros. Só bons textos e nada mais poderão refrear essa tendência tão preocupante. Numa história como a contada aqui, há superação sem pieguice. Não à toa, vai virar série e está sendo montada como musical.

A todos os envolvidos no projeto, Mazal Tov.

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Quinta, 02 Mai 2024

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