Ladrões cavalheiros
Minha amiga e cliente Rina morava num dos prédios mais bonitos de São Paulo há cerca de dez anos. Não somente era imponente naquelas linhas neoclássicas tão ao gosto da cidade, como ficava ainda mais impressionante pelo gigantismo do entorno verde onde fora erigido, pela área colossal dos apartamentos e, é claro, pelo tortuoso aparato de segurança para entrarmos lá. Embora ficasse a poucas quadras da Avenida Paulista, ao caminhar pelos jardins e dependências comuns era como se fôssemos transportados para o éden.
Até que um dia um morador foi rendido na rua. Três homens entraram com ele no carro e se infiltraram na fortaleza. De dentro, dominaram os vigilantes na guarita e facultaram a entrada de mais dois automóveis com mais comparsas. Comparsas? Não sei sequer se esta é a palavra. "Eram finíssimos, falavam todos os plurais, estavam muito bem vestidos e mantiveram a calma com uma fleuma britânica", me contariam Rina e Horácio quase um ano depois do sucedido, e U$ 50 mil mais pobres. O fato é que os meliantes ficaram muitas horas no prédio.
Dos 30 apartamentos, eles conseguiram entrar na metade. Nem todos estavam ocupados por seus moradores. O método era sempre o mesmo. A guarita abria a garagem e o motorista era rendido mal estacionava. No apartamento, eles cortavam telefone e demais ligações com o mundo externo. Desculpavam-se pelo transtorno e pediam a colaboração de forma educada e objetiva. "Era incrível a capacidade de comunicar do senhor que nos roubou. Ele disse com suavidade que só queriam mesmo dinheiro e joias. E elogiou o Di Cavalcanti, nos dando parabéns. Então limpou o cofre."
Rina não parava de tecer elogios. "O que roubou o apartamento da Ilana era sensacional. Como o marido dela é nefrologista, conversaram muito sobre a hemodiálise da mãe dele, e ele pediu com gentileza um uísque com gelo porque sempre se emocionava ao falar dela. No final, eles deixavam todo mundo – patrões e empregados – fechados na suíte e pediam para que não alardeassem nada por uma hora depois da saída, ordem a que quase todo mundo obedeceu. Falam que podem ter levado mais de US$ 1 milhão em dinheiro e joias, mas tem gente que fala do dobro ou do triplo."
Eu ainda disse, meio que para descontrair: "Parece que os caras limparam vocês e ainda deixaram saudades." Rina foi enfática. "Parece, não, tenha certeza. A Dora disse que o Ivan não a tratara daquele jeito nunca. E desde então brinca que estaria mais feliz com o ladrão." Então Horácio completou. "Despediram-se com elegância, pediram desculpas pelo contratempo e deram os remédios para quem precisava. Como muita gente ali tinha dinheiro frio, ninguém prestou queixa. Os caras eram impecáveis. Queria eu ter executivos daquele naipe. Quer dizer, mais ou menos."
Boas maneiras contam em qualquer circunstância. Disse Claudia Costin na FSP: "A boa educação associa-se também à polidez, ao saudável hábito de demonstrarmos respeito por outros seres humanos no trato cotidiano e nas conversas que temos com pessoas dentro e fora de nossa bolha. As regras de etiqueta, longe de serem um ritual sem sentido ou ultrapassado, envolvem fórmulas simplificadas de enviar sinais a nossos interlocutores de que entendemos e compartilhamos a mesma condição humana. Trata-se de parte do ferramental que foi se desenvolvendo no nosso processo civilizatório."
E, pelo jeito, isso se aplica a qualquer circunstância. Mesmo àquelas em que somos subtraídos de uma parte de nosso esforço e de nossa memória. Mas vão-se os anéis...e ficam as lembranças.
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