Kadish para Philip Roth

Ontem passei a manhã pensando em você, Phil. Acabara de ler "Forest Dark", de Nicole Krauss, livro que estampava um elogio seu na capa. Acamado, embalado pelos delírios do estado febril e pela mais aconchegante das solidões, apenas suavizada pelos li...
Kadish para Philip Roth

Ontem passei a manhã pensando em você, Phil. Acabara de ler "Forest Dark", de Nicole Krauss, livro que estampava um elogio seu na capa. Acamado, embalado pelos delírios do estado febril e pela mais aconchegante das solidões, apenas suavizada pelos livros, ocorreu-me que em 2018 não teremos a outorga do Nobel de Literatura. O que isso significava? Que apesar de termos o anúncio de dois vencedores em 2019, o tempo poderia fulminá-lo antes que se esboçassem os primeiros prognósticos. Você não seria o primeiro, e o último talvez tenha sido Aharon Appelfeld. Então me veio um pensamento delirante, desses que me fizeram sentir um calafrio pungente e tomar mais uma Dipirona antes de afundar sob as cobertas. Ele me lançava um repto tão singelo quanto absurdo: se tivesse que lhe dizer alguma coisa, em poucas frases, o que seria? O que poderia diverti-lo e, ao mesmo tempo, reverenciá-lo? 

Ora, diria que partisse em paz, pois deixava para trás um legado gigantesco. E que palavra escolheria em inglês? "Awesome" seria pobre; "impressive" trairia um pouco de deslumbramento; "imposing" soaria arrogante; "towering" não seria má ideia; "sublime" seria reducionista; "striking" para mim é quase um vício de linguagem e tento evitá-la; "paramount" é muito Sétima Arte para meu gosto; "prodigious" não deveria se aplicar a quem está na marca dos 85 anos e "outstanding" é muito caro à narração desportiva e o levaria a arquear preguiçosamente as sobrancelhas. Certo mesmo é que algo sairia. E, a depender do espaço que você me desse, eu ainda evocaria que quando Pelé morrer, o lance que mais irão reprisar da vida dele no gramado, será o gol que ele não fez, depois de dar uma finta de corpo sublime no goleiro adversário e ter chutado para fora com as traves livres. Achei a palavra em inglês: "sublime". 

À noite, vi de relance "Pastoral Americana" num prateleira alta e empoeirada. Há quanto tempo não o releio? Vinte anos. Menos mal que matara as saudades de Seymour Levov no cinema, graças à interpretação magnífica de Ewan McGregor. E com Dakota Fenning fazendo uma Merry Levov irretocável – desorbitada e afundada no torvelinho de angústias que lhe valiam o modelo familiar perfeito e o mundo em colapso. Quando a febre baixou e, passada a meia-noite, achei que era hora de ver que más notícias o Twitter me traria, e eis que soube de sua morte, velho Phil. E então fiquei intrigado. Com dificuldades de achar uma posição deitado, fui até a poltrona surrada da sala e matutei sobre os poderes premonitórios que me davam os estados febris. Quando consegui dormir, depois das 3 da madrugada, meu último pensamento foi que escreveria uma nota sobre você, deixando de lado as pautas de negócios e viagens. 

Hoje acordei um pouco melhor. Mesmo assim, passaram-se longos minutos antes que deixasse a cama. Despertei sob o chuveiro como fui dormir, ou seja, pensando na crônica das pequenas coisas que também embalaram sua vida. Foi no livro de Claudia Roth Pierpont, intitulado "Roth unbound" que li certa vez sobre seu breve "affair" com Jackie Kennedy, um ano depois da viuvez mais lastimada do planeta. A certa altura, chamado para um jantar formal ao lado dela, suas preocupações com o "dress code" o levaram a comprar sapatos pretos e um terno. Mais do que tudo, o preocupava ser canhoto e, sem querer, incomodá-la à hora de se servirem. No apartamento da Quinta Avenida, ela o tranquilizou, dizendo que as crianças estavam dormindo. Você ainda imitou a saudação militar do pequeno John diante do caixão do pai e deitou erudição citando pelo nome o pônei de Caroline, o Macaroni. E então beijou-a. 

A partir de hoje, Phil, muitos vão se debruçar sobre suas consultas com o psicanalista alemão Hans Kleinschmidt, especialista em criatividade e muito prestigioso entre artistas e escritores. Será que temos um assim em São Paulo? O que mais me ficou para além de sua dimensão estética e de criador de vidas, foi a descoberta dos "filhos de Kafka". Ali revelou-se o "Mensch" em sua completude. Em 1972, depois de uma estada em Veneza e visita a Viena, onde percorreu a casa de Freud, você decidiu que iria a Praga. Era primavera e apenas quatro anos antes os russos tinham esmagado a famosa Primavera, a exemplo do que já acontecera em Budapeste em 1956. A identificação com a linda cidade foi imediata e o fio condutor foi o escritor Ivan Klima, ele próprio sobrevivente do campo de concentração de Terezin. Seria a primeira visita de uma série de três que o levariam a ficar amigo, entre outros, de Vaclav Havel e Milan Kundera.

Ciente de que seus brilhantes colegas de ofício viviam num estado policial que não lhes permitia se sustentar da arte, você voltou para Nova York e reuniu Arthur Schlesinger, Arthur Miller, John Updike, John Cheever, William Styron, John Hersey, entre outros, para que cada um desse US$ 100 ao mês para uma lista de 15 escritores tchecos. Ora, Phil, eu vivi na Europa em 1973 e bem sei o que essa quantia podia representar na França. Imagino o milagre de dignidade que isso significava em Praga. Além de ajudar os vivos, você deu voz aos mortos. Um deles foi Bruno Schulz. Outro foi Tadeusz Borowski que, sobrevivente de campos, cometeu suicídio aos 28 anos. Na então Tcheco-Eslováquia, você foi vítima de uma tentativa de intimidação por parte da repressão. Quando interrogaram Ivan Klima o que você tanto fazia lá, este criou uma cortina de fumaça: "Vocês não leem os livros dele? Ele vem por causa de nossas mulheres".        

Yitgadal v´yitkadash sh´mei raba b´alma di-v´ra chirutei, v´yamlich malchutei b´chayeichon.

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Quarta, 24 Abril 2024

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