Gil Gomes, o amigo das manhãs

Entre os anos 1980 e 1990, nos longos trajetos que me levavam de casa à fábrica, então num subúrbio de São Paulo, nada me distraía tanto quanto um cigarro e a voz do repórter policial Gil Gomes. Ainda hoje me pergunto como é que podia me dar ao desfr...
Gil Gomes, o amigo das manhãs

Entre os anos 1980 e 1990, nos longos trajetos que me levavam de casa à fábrica, então num subúrbio de São Paulo, nada me distraía tanto quanto um cigarro e a voz do repórter policial Gil Gomes. Ainda hoje me pergunto como é que podia me dar ao desfrute de tanta amenidade, num horário do dia em que tinha, em princípio, que estar antenado com a pauta séria do mundo. Ocorre, no caso, que o radialista tinha um estilo muito peculiar de narrar suas histórias tétricas. E ao fazê-lo, fisgava o intelectual que morava dentro de mim, talvez mesmo o embrião do escritor que eu teimaria em me tornar um dia. 

Do que tratavam as histórias? Pois bem, de crimes, ciúmes, raptos, extorsões, latrocínios e, sobretudo, de dramas rodriguianos que Gil Gomes colhia direto nas delegacias. O sui generis em tudo isso é que um caso que poderia ser resumido a "Armando, o padeiro, sequestrou Claudete, a cabeleireira, porque ela rompeu o relacionamento e começou a se relacionar com Ademar, o pastor", virava uma narrativa de 20 minutos, cheia de efeitos sonoros especiais, dando fundo à voz bem articulada do locutor. Sem intervalos comerciais, os casos eram dramatizados com ritmo, entonação e drama. 

Como fazem os escritores, Gil Gomes ia lá atrás em busca das origens de Armando, Teresa e Ademar e dava um zoom nos tópicos que seriam determinantes para o desfecho do enredo. Quando li "Tia Júlia e o Escrevinhador", de Mario Vargas Llosa, em que o dramaturgo Pedro Camacho dava vida a personagens de radionovela, a figura que me veio à mente foi a do genial Gil Gomes. Chegando ao trabalho, muitas vezes ficava no carro por mais alguns minutos, à espera do desfecho de um caso mais prolongado. Só com o fim, que nunca era bom, me sentia pronto para enfrentar o dia. 

Acabo de saber que o paulistano Gil Gomes faleceu ontem aos 78 anos. Para mim, durante anos, ele era só a voz do rádio. Mais adiante, quando já não era tão assíduo, vi que ele fora para a televisão, num programa chamado "Aqui agora". É interessante destacar que a televisão não matou a tensão dos relatos radiofônicos. E também que a figura de Gil Gomes era mais ou menos como eu imaginava, quando dele só conhecia a voz. Não sei se ele sorria. Acredito que sim embora nunca o tenha visto sem uma expressão grave. Com a morte dele e de Zé Betio, mais um pedaço de São Paulo se foi.  

Veja mais notícias sobre Memória.

Veja também:

 

Comentários:

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Visitante
Quinta, 25 Abril 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://amanha.com.br/