Fernando da Mota Lima ou a catástrofe brasileira
Quando estive recentemente no Recife e via diariamente as chuvas e o vento que castigavam a capital pernambucana, vez por outra o pensamento se voltava para meu ilustre xará. Isso porque sei desde sempre o quanto a meteorologia aziaga pode desanimar alguns e, no caso dele, o quanto era suscetível de agravar o que parecia ser a escalada irrefreável de um estado de melancolia e desilusão que permeava até seus textos elegantes. Mas, à última hora, já com o aparelho na mão, eu desistia de lhe telefonar, não obstante estivéssemos em constante troca de mensagens eletrônicas. Desistia de chamá-lo para dar uma circulada pela cidade por entender que cada um tem o direito de ir fundo em sua dor e nada pode ser mais irritante do que um amigo "alto astral" (o que não chego a ser) a querer tirá-lo de casa, rebocá-lo para um almoço e falar-lhe de um mundo cuja visão de amanhã já não é mais sequer compartilhável. Hoje me arrependo de não tê-lo feito. Não que as coisas pudessem ter sido diferentes. Mas, ao saber de sua morte no Recife, mal botei os pés na Europa, fui tomado daquela sensação de omissão que acomete os que hesitaram em tentar fazer um gesto solidário.
Para darmos aos fatos o senso de proporção merecido, preciso admitir que nos vimos pessoalmente poucas vezes. Mas sendo colaboradores assíduos da revista eletrônica "Será?", e não tendo pruridos em expor nossas opiniões e sentimentos, fato é que se criou entre nós uma corrente de energia que se renovava a cada semana. Embora pudesse parecer meio paroquial, o fato é que um pequeno núcleo de colaboradores dá tração à sessão de comentários da revista e nós dois nos integrávamos esse grupo, ao lado de Helga Hoffmann e Clemente Rosas (bem imagino o quanto esteja sofrendo). Ademais desse cenário, dificilmente havia semana em que não trocássemos mensagens bem-humoradas pelo Facebook – veículo que muitos imaginam ser fonte estrita de lixo, mas que pode ser excelente quando se abordam temas certos com pessoas certas –, frequentemente calcadas nos paradoxos que pesavam sobre nossas vidas. Tínhamos o mesmo nome, a mesma estatura física e opiniões similares sobre vários temas. Mas ele se via como um sedentário empedernido ao passo que eu estava sempre em trânsito, o que o levava a chamar-me jocosamente de Marco Polo.
Enquanto publicava na "Será?" a maravilhosa série "Memórias de um Leitor", em que traçou sua longa relação com os livros, chamou-me atenção uma digressão pungente que fez por ocasião da morte de Antonio Cândido, intelectual que venerava e que visitou em sua casa em São Paulo em dada oportunidade. O texto é um primor, mas exsudava um pessimismo agudo com respeito ao Brasil. Jamais esquecerei que se referia ultimamente ao país como um "fazendão" e cada vez mais nossas mazelas entranhadas lhe faziam mal, como se estivesse em franco curso um processo de somatização dos ecos que emanam de Brasília. Não é de hoje, aliás, que insisto que o Brasil não mata só nas ruas, no campo e nas favelas. Mata também pessoas na solidão de seus apartamentos, atordoadas e desapontadas diante do quadro de esfarelamento e distopia que impera. Não foi à toa que saiu no Facebook a seguinte frase de sua lavra: "De repente, tive uma estranha sensação de morte. Achei que estava morrendo. Só que essa sensação não me causou nenhum medo ou pânico. Pelo contrário, foi a maior experiência de serenidade e paz que senti na minha vida." Para muitos, foi um alerta.
Muito se falará e escreverá sobre esse homem superlativo, de finos olhinhos rasgados e sorriso aflorado. Professor queridíssimo, seus alunos por certo tomarão a frente das homenagens que o momento pede. De minha parte, pedi-lhe meses atrás que me autorizasse a usar um pensamento seu sobre os livros para figurar na introdução de meu "Vinhetas de Paris no outono", lançado há pouco tempo. Pena que não tive oportunidade de vê-lo para presenteá-lo com um exemplar. Mas aqui vai o trecho que entesourarei como um dos mais belos que já li em língua portuguesa: "O tédio das primeiras horas da tarde, quando o sol retinia sobre as fachadas e telhados das casas semiadormecidas, rendia os corpos áridos à lassidão que corroía o cotidiano da vila. Penso, no entanto, que me tornei o único habitante venturoso de Igarapeba quando descobri o mundo da imaginação humana comprimido na estante empoeirada de meu tio Edmundo. A chave da estante e a solidão fruída na cadeira de balanço da varanda à sombra do sol e da rotina sem alma fundaram o paraíso secreto que me converteu para sempre num explorador do mundo reinventado pela literatura". Esse laço que criamos, amigo velho, resistirá ao tempo. Pena que tenhamos nos conhecido já às vésperas do inverno da vida. Agora chegou tua vez de viajar e, afinal, conhecer um local que ainda me é estranho. Até um dia.
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