Atlanta, 1977
De Paris (França)
Sempre que leio sobre manifestações de ódio racial, lembro de um episódio que aconteceu no quadro de um simpático programa de intercâmbio, cujo escopo era o de todo ano levar 200 pernambucanos à Geórgia, nos Estados Unidos, onde ficavam duas semanas. O mesmo voo que os transportava trazia outro tanto de americanos que, em ambas as pontas, ficavam hospedados em casas de família. Lembro que um determinado grupo chegou a conhecer os Carter, quando Jimmy era governador do estado sulista, antes de ocupar a Casa Branca. Foi meu pai quem propôs que eu tomasse o voo de 1977, inconformado que, aos 19 anos, eu já tivesse rodado a Europa e o Oriente Médio, mas que permanecesse ignorante do que então em Pernambuco chamava-se de "América", como se nós integrássemos a Australásia, e não o mesmo continente. Nessa época, até o provincianismo era mais belo.
Chegando ao aeroporto de Atlanta, vi uma placa com meu nome. Quem a levava era um senhora que poderia ter uns 50 anos, usava óculos de lentes grossas, uma bata florida, e foi a segunda pessoa mais gorda que eu já vira até então, só perdendo para um rapaz que jogava sinuca na Rua do Lima, perto de minha casa, que me diziam ser filho de um homem ilustre, e que morreria muito jovem. Molly tinha Donny, o filho, e Derek, o marido, um sujeito que veio me confidenciar que "não tinha mais nada com ela na cama" – sem que eu sobre isso nada tivesse perguntado, é óbvio, o que achei uma confidência repugnante e canalha. Ali todo mundo bebia muito, mas não havia alegria. Um dia Donny e amigos me chamaram para um safári, com a anuência do pai. "Você vai adorar". Francamente, pensei que íamos paquerar as meninas da banda da escola onde os rapazes estudavam. Mas não era isso.
Fomos então de carro até um gueto onde negros parecidos com Morgan Freeman passavam o dia em cadeiras de balanço, de camiseta cavada, à porta de casas de madeira, de olho nos passantes e nas crianças que brincavam com um pneu. Era uma cena de filme. Donny desacelerou e, encostando na calçada, um dos colegas arremessou nas costas de um negro uma lata de cerveja cheia, o que fez o homem dar um grito e cair no chão. Então ele acelerou, os sorrisos ecoaram nervosos no carro, e eu fiquei perplexo, sem ação com a cena que jamais esqueceria. À noite, enquanto bebia a décima dose, o pai me disse: "Vocês são jovens, precisam se divertir. E depois, para que servem os negros, senão para nos distrair com suas macaquices?" Desde então, vi muita coisa feia, inclusive na África do Sul, em plena vigência do Apartheid. Mas a cena me ficou como a marca de uma das maiores barbáries que eu já presenciei.
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