Aqui é o meu lugar

Lembro o estribilho da música de Ivan Lins e a evocação poética que fazia a "seu lugar". Tema recorrente na minha parca produção literária, a questão do pertencimento não se deslindará nunca. Salvo, talvez, com ajuda psiquiátrica ou medicamentosa. Ma...
Aqui é o meu lugar

Lembro o estribilho da música de Ivan Lins e a evocação poética que fazia a "seu lugar". Tema recorrente na minha parca produção literária, a questão do pertencimento não se deslindará nunca. Salvo, talvez, com ajuda psiquiátrica ou medicamentosa. Mas desconfio que deverá permanecer em aberto até o suspiro final. E ninguém pense que isso decorre simplesmente do fato de eu estar à gosto em muitos países. Tem mais a ver, isso sim, com estados de espírito que pedem, vez ou outra, o concurso de algumas paisagens em detrimento de outras. Como não tenho âncoras pesadas, assentadas no fundo do mar, posso levantá-las com facilidade e ir bater em outra freguesia por uns tempos. Ademais, sendo escritor bissexto, preciso da alternância com a mesma intensidade que um pintor viaja com tintas, pincel e cavalete para ver o mundo sob novos ângulos. 

É claro que isso não me impede de ter calafrios de emoção em diferentes situações. Emoções de que naipe? De pertencimento, ora. Isso é relativamente comum quando estou no Recife no mês de fevereiro, nas semanas que antecedem o Carnaval. Basta um passeio pelas ruas do centro velho para que uma vaga de alegria me invada. Ao passar pela porta de lojas populares, é comum que o frevo esteja sendo executado em último grau, muitas vez com música ao vivo. As pessoas param, as mulheres começam a se sacudir, um bêbado ensaia uns passos do ritmo alucinante e eis que de repente surge um "passista" profissional que, parecendo surtado, enverga uma sombrinha minúscula e faz passos tão ousados que dir-se-ia estar matando baratas, ou mesmo fazendo acrobacias sinuosas, dignas do circo. Então olho em torno e me sinto profundamente irmanado a todas aquelas pessoas. Somos irmãos. 

Outra hora sobrevém a reflexão de que o desapego foi o melhor caminho. Noite dessas rememorava uma ocasião em que, apenas 5 anos depois de estabelecido em São Paulo, recebi convite para vir tocar a área de exportação de um grande grupo nordestino, hoje mundialmente famoso. O dono tinha uma visão de futuro e precisava do concurso de alguém jovem, inspirado e igualmente sonhador. Sempre fui de tomar decisões sozinho. Mas estando daquela vez casado, abri o tema com meu então sogro, um homem tido como muito sábio e ponderado. Ele escutou cada uma de minhas palavras, disse que entendia minha inclinação sentimental a dizer sim, mas concluiu que eu ainda tinha muito a aprender no Sudeste do Brasil. Que era o momento de dizer "não" ao convite e perseverar na rota que eu traçara. Agradeço muito o conselho que veio na hora certa e me desviou de uma reentrada na atmosfera prematura. 

Efetivamente, dali em diante, tendo perdido uma janela de oportunidade de volta à altura do que pedia minha busca de espaço, efetivamente sucedeu a melhor parte da experiência em São Paulo. Nesse contexto, foram dezenas as vezes em que senti emoções análogas com respeito à capital bandeirante. Dando minhas caminhadas nas manhãs ensolaradas na Praça Buenos Aires ou enfurnado nas salinhas de cinema da Reserva Cultural, me sentia aconchegado num lugar que, se dependesse de mim, não deixaria nunca. Afinal, foi dali que me lancei para o mundo. Por melhores que tivessem sido as ofertas profissionais de outros lugares – inclusive da Europa –, São Paulo me deu contrapartidas honestas e palpáveis a todo esforço que empenhei. Não foi uma ancoragem, foi uma parada num "hub". É claro que outros fatores podem concorrer para que essa sensação seja mais ou menos intensa. 

Nesse caso, me refiro às mulheres com quem vivi em diferentes partes do Brasil e do mundo. Por que ser cabotino e negar a importância desse fator? Quando tinha namorada em Curitiba, Brasília, João Pessoa ou mesmo Recife (foto), essas cidades se tornavam as mais interessantes e eu só tinha olhos para as vantagens que viver nelas implicava. O mesmo se deu com a França, Alemanha, Japão e Estados Unidos. À guisa de conclusão, acho que sou mesmo um sujeito algo volúvel, excessivamente hipotecado às emoções do momento. É como se tivesse vindo ao mundo realmente a passeio. Não são poucos os que dizem que esse estilo de vida poderá me valer uma velhice meio amarga, no mínimo isolada. Será? Enfim, acho que viver o aqui e o agora é uma boa receita e, se não tenho muito do que me queixar, é porque está de bom tamanho e o demais pode esperar. 

De uma coisa, contudo, não posso ficar longe por muito tempo: de meus amados livros. É a eles que pertenço, essencialmente. 

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Quinta, 25 Abril 2024

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