A trilha sonora de minha vida
Sempre que passo pelo Boulevard Saint Michel, no coração do Quartier Latin parisiense, e vejo a livraria Gibert Jeune, lembro da tarde de inverno em que uma multidão ensopada aguardava na calçada a vez de ganhar um autógrafo de Charles Aznavour. Naquele dia, deixei minha proverbial impaciência de lado e, humildemente, esperei durante duas horas o momento de ver de perto aquele homem franzino e grisalho que, ao lado da filha, assinava livros e fazia uma piada com cada um dos fãs que chegava a ele. Na prateleira ao lado de minha cama, ainda vejo o livro: "Pour Fernando, avec la sympathie de Charles". De nascimento, era Aznavourian.
Mais recentemente, num sarau musical em casa de meu amigo Jean-François Béraut, encontrei Eric Bechot, seu pianista e arranjador de uma vida. Tomando um drinque, Eric contou sobre as muitas viagens que ambos fizeram ao Brasil e o quanto Charles amava nossa terra. Disse-lhe da primeira vez que o vi no palco do Olympia, no começo dos anos 1980: "Foi meu verdadeiro professor de francês. Pois como sabia as letras de cor, o vocabulário crescia dia após dia". Pois bem, chegando a Istambul nesta segunda-feira, 1 de Outubro de 2018, a caminho da Europa, soube de sua morte, aos 94 anos. Dizer que pensava nele esses dias seria colossal forçada de barra. Afinal, quando foi que não pensei nele desde os 15 anos?
Parisiense da Rua Monsieur Le Prince, Aznavour tinha imenso orgulho de suas origens armênias. Quando fui a Yerevan, em 2016, meus amigos fizeram questão de mostrar a casa que lhe tinha sido doada pelo governo para que ele tornasse as visitas ao país dos ancestrais mais frequentes. Quando do grande terremoto que devastou a parte norte do pequeno país, foi ele quem gravou junto com colegas a linda "Pour toi, Arménie". Intérprete caprichoso, não se intimidava diante de letras caudalosas, especialmente aquelas em que falava da fome de sucesso e das origens pobres, em que a luta pela sobrevivência se transformava num divertido vale-tudo.
De marcante presença cênica, vê-lo cantar sem fazer esforço e mesmerizar o público fiel que cativou no mundo inteiro, foi uma das alegrias de minha vida. Foi graças a ele que impressionei minhas namoradas, que lhes recitei letras inteiras de cor ao pé do ouvido e que cantei em karaokês "Que c´est triste Venise". Sua partida aos 94 anos, não deixa de ser emblemática daquilo com que todos sonhamos: deixar para trás uma vida de arrojo e criatividade, de amores bem cultivados e de momentos em que todos à nossa volta conheceram o sublime. Filósofo como convém a quem tinha um pé na Ásia, acho que Aznavour não temia a morte assim como não se poupou em vida.
Bonne route, mon pote.
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