A mortalidade de Pelé
Hoje vi Pelé de mãos dadas com Vladimir Putin, no Kremlin, refém de uma cadeira de rodas, por ocasião do sorteio das chaves da próxima Copa do Mundo. Na expressão quase constrangida, pela primeira vez me dei conta de que um dia ficaremos sem nosso Rei. Reservei a tela em que ele aparecia, e me flagrei voltando a ela diversas vezes ao longo da tarde, como se buscasse a confirmação dessa verdade inelutável, e que me parecia até então não se aplicar e ele. Sim, Pelé é mortal. Então rememorei certa noite em que papai me levou ao estádio para vê-lo em ação contra um Náutico altivo, lá no Recife. Da partida, lembro que ele brilhou, mas não percebi bem em que circunstâncias. O que me pareceu certo, foi que todo mundo ali torcia primeiro por ele, depois pelo Náutico, e quase ninguém pelo Santos. E, no final, já nem sei o resultado, lembro da imagem dele acenando para a torcida, já sem camisa, descendo para o túnel do vestiário. Àquela altura, ainda lhe faltava a terceira Copa, a de 1970, no México.
Uns vinte anos mais tarde, quando ele já deixara a bola, estava eu com dois amigos da Catalunha no então mais aclamado restaurante do Brasil, o Leopoldo, no Itaim Bibi, em São Paulo. Eram eles o simpaticíssimo Enrique Maier e seu sócio, um homem corpulento e ansioso chamado Xavi Ribò que, naquela noite, destilava ressentimentos. Isso porque descobrira que a filha, de 22 anos, estava saindo com um sujeito que tinha sido seu colega de turma, ele também com 44. Nada parecia acalmar aquele desassossego. Até que, de repente, ambos os convidados ficam transfixados por alguma coisa ou alguém que aparecera à porta. Por instinto, já imaginei para onde correríamos se fosse um assalto. Pouco poderia fazer na eventualidade de ser a filha de Xavi com o tal namorado. Mas não era nada disso. Era Pelé que adentrava o recinto, distribuindo simpatia. Serviram-nos mais uísque e, ato contínuo, tudo mudou. Era ele? Sim. Eu tinha certeza? Claro. E, agora, o que fazer? Calma, eu disse, temos tempo.
Deixei a poeira assentar. Eles já tinham perdido a fome e se desesperavam por não ter trazido uma máquina fotográfica. Que estúpidos tinham sido. Será que a casa não dispunha de um fotógrafo plantonista para registrar o momento? E que pena não terem uma bola para o Rei autografar. Fui então ao balcão, onde Pelé conversava com um amigo. Pedi licença e dei o recado: "Bicho, me ajude. Estou com dois catalães, desses que vão ao Camp Nou duas vezes por semana, um deles vive momento difícil, ainda por cima. Os caras sabem até a escalação do teu time. Aquele que perdeu do Náutico na Vila Belmiro". Ele sorriu, a abordagem estava funcionando. "Dá uma passadinha na mesa, diz um oi, fica lá 30 segundos". Então indiquei onde estávamos. Ele pediu licença, pegou meu braço e disse: "É melhor agora, depois vai ficar complicado". Os catalães levantaram de olhos marejados e passaram os dez minutos mais felizes de suas vidas. Nunca mais pararam de me agradecer.
Pois foi esse homem que vi na cadeira de rodas, Maradona lhe dando um beijo na testa. Tempos desses, meu amigo e mentor, o jornalista Ivanildo Sampaio, escreveu uma crônica antológica sobre Pelé. Em paralelo, desfiou um rosário menos lisonjeiro sobre o cidadão Edson Arantes do Nascimento. E isso porque lhe reprovava a indiferença pela filha que tivera, e cuja paternidade só admitiu depois do exame clínico cabível. Ora, admito que o episódio não somou muito às glórias do Rei. Mas também sei, talvez um pouco mais do que Ivanildo, que não se constroem relações com base numa determinação legal, e que o cimento afetivo nem sempre resiste ao desgaste do tempo. Seja como for, fiquei abalado em ter visto Pelé tão frágil. Quando eu tinha 18 anos, deambulava com uma namorada na cidade velha de Acco, em Israel. Meninos árabes chutavam uma bola no terreno entre o mar e a mesquita. Juntei-me a eles. Quando disse de onde era, todos gritaram em uníssono: "Bele, Bele, Bele".
Aguente firme, cara. Hoje vi que anda não estou pronto para perdê-lo.
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