A despedida do chinês visionário que mudou o Brasil
Crises econômicas vêm e vão, e poucas certezas restam sobre elas além da constatação de que o Brasil acaba invariavelmente decolando dos cenários mais difíceis impulsionado por uma turbina – a soja. E para entender o extraordinário poder que o grão dourado originário do Sul exerce sobre a economia brasileira, movendo uma robusta cadeia agroindustrial e articulando o Brasil com mercados globais, é essencial prestar atenção em um chinês discretíssimo mas compulsivamente empreendedor chamado Sheun Ming Ling. Com sua morte, aos 99 anos, na madrugada desta quinta-feira (19 de março), em Porto Alegre, encerra-se uma jornada que transformou a paisagem do campo e os hábitos de consumo nas cidades a partir da segunda metade do século 20.
Em fuga de uma China convulsionada pela guerra civil que colocou Mao Tse-Tung no poder, Sheun Ming Ling tomou o caminho do Brasil em 1951 apoiado quase que somente no que viria a se mostrar o seu grande trunfo, a coragem. Dinheiro, trazia pouco. Competência linguística, menos ainda, porque nada falava de português e nem mesmo de inglês.
Para complicar tudo um pouco mais, era um tipo retraído na comunicação até mesmo em sua língua natal, porque embora nascido em Beijing foi criado em Wenzhou. O dialeto que ele falava não era compreendido por muitos chineses – inclusive por Lydia Wong, a jovem elegante que saiu de Xangai, a "Paris do oriente", para vir ao Brasil casar com ele em 1954.
Ambos se instalaram em Santa Rosa, situada no então poeirento noroeste gaúcho. O ganha-pão do casal era a febril atividade de Sheun Ming Ling como comprador de soja para fornecimento à indústria. Tudo era incipiente: produção escassa, processamento ineficiente e atrasado tecnologicamente, como ele logo percebeu, com base em sua experiência como ex-funcionário da gigantesca China Vegetable Oil Company (CVOC). A oportunidade logo ficou clara, e Sheun Ming Ling passou a dormir de quatro a no máximo cinco horas por dia. Quando acordado, estava trabalhando, e Lydia que se virasse para fazê-lo engolir alguma coisa antes de sair de casa, com seu passo rápido e determinado.
Ele precisava convencer os colonos a plantar mais e mais daquele grão. Tinha de garantir a eles que arranjaria comprador para tudo o que tirassem daquela terra vermelha – que ele acreditava, como o tempo comprovou, ser excepcionalmente fértil.
Mais do que isso, precisava envolver o gerente do banco a viajar na mesma aposta dele, oferecendo crédito e facilidades aos agricultores que tinham medo só de pensar em plantar com dinheiro de empréstimo. O gerente também devia ser convencido de que o negócio era bom para o banco, que o dinheiro do financiamento iria voltar, claro. No centro desta cadeia de confiança estava ele, o chinês de figura magra e fala complicada, mas que, por insondáveis razões, cativava qualquer um com seu jeito humilde, respeitoso e, sobretudo, sério. Como essa química funcionava, ainda não se sabe. Uma pista é o que a própria esposa diria, sobre o que o atraiu nele, depois de celebrar 66 anos de casamento, em 2019. "Ele sempre foi um homem honesto, muito inteligente e muito trabalhador. E bonitoon!"
Sheun Ming Ling teve parcos estudos, na China, porque aos 14 anos teve de trocar a escola pelo trabalho, e quando, mais tarde, tentou ir aos Estados Unidos estudar foi barrado pela eclosão da Guerra da Coreia, que nutriu a desconfiança norte-americana em reação aos chineses. Mas a falta de pedigree acadêmico, embora o tenha frustrado à época, não limitou sua trajetória na medida em que ele tinha uma habilidade nata. Fazia cálculos com precisão e velocidade, e gostava de se testar usando seu ábaco chinês em torneios matemáticos disputados com contendores que dedilhavam em calculadoras.
A sagacidade com números permitiu a ele ter clareza sobre margem de lucro e ganhos de escala ao longo da vida, mas o modo como fazia negócios mostrou que a perspicácia não envolvia apenas algarismos, mas gente. Para estimular os agricultores a vender a produção para ele, adotou com entusiasmo uma balança que, digamos, se enganava ao pesar a soja trazida pelo colono. Mas o engano da balança favorecia o agricultor, informando sempre alguns quilos a mais do que a quantidade real que ele estava vendendo a Sheun Ming. Uns contavam para outros como era vantajoso vender para o chinês desatento, e logo grande parte dos grãos era canalizado para ele. Poderia ter oferecido preço maior aos colonos, mas talvez não funcionasse tão bem quanto a estratégia da balança burra. Sinal de que o danado do chinês já estava compreendendo e lidando bem com a esperteza brasileira.
Como registrado no livro "Entre dois mundos", Sheun Ming Ling foi avançando a passos largos – e ele caminhava rápido, mesmo, além de afundar o pé no acelerador pelas estradas da região de Santa Rosa, visitando produtores para aumentar o volume de soja negociada. Tornou-se um industrial, fundou a Olvebra – Óleos Vegetais Brasileiros S.A. – em sociedade com Charles Tsé. Introduziu no Brasil a embalagem redonda para o óleo de cozinha.
Dedicou-se à difusão de uma nova suinocultura voltada para a oferta de carne e não de banha, mudança acolhida com entusiasmo pelos consumidores urbanos – que, naturalmente, migraram para o óleo vegetal. Carro-chefe da Olvebra, o óleo de soja Violeta, da legendária lata vermelha, tornou-se o óleo de cozinha mais vendido em todo o Brasil durante muitos anos das décadas de 1970 e 1980.
Numa cartada ainda mais audaciosa, lançou a primeira fábrica de leite de soja em pó até então no mundo. Comprou uma briga indigesta com o estigma que cercava o leite de soja nos anos 1970, e não teve sucesso, mas disparou com orgulho uma campanha em que anunciava "o alimento do século" - as décadas seguintes confirmariam a tendência de uso industrial do produto.
Sheun Ming Ling dormia pouco mas sonhava muito, e se Lydia e os filhos Winston, William, Rosa e Wilson não o segurassem um pouco é provável que o portfólio de empresas e negócios a que se lançou fosse ainda maior. Em meados dos anos 90, já entrando nos 75 anos, foi convencido de que era preciso reduzir a carga de trabalho e passar o comando dos negócios para os filhos. Uma reestruturação estava a caminho. Os negócios da família, que nos 80 haviam ingressado na indústria de resinas plásticas, já migravam para uma atuação crescente em embalagens e não-tecidos, com a liderança da segunda geração dos Ling.
Em 1995, Lydia e Sheun Ming provocaram os filhos sobre um novo empreendimento que pudesse disseminar e perpetuar os valores da família Ling. Era a inspiração inicial para a criação do Instituto Ling, que nos últimos 25 anos financia bolsas de estudo para jornalistas em universidades de primeira linha no exterior, além de manter um ativo centro cultural em Porto Alegre. Em nota emitida nesta quinta-feira (19 de março), a instituição assinalou alguns destes valores – "confiança, simplicidade e frugalidade, respeito aos indivíduos, transparência, integridade e honestidade".
Sheun Ming Ling, o chinês que fazia questão de ajudar escolas da cidade onde cresceu, Wenzhou, vibrou particularmente com a ideia de financiar estudos no exterior para estudantes brasileiros aceitos por universidades de excelência mas sem condições financeiras para alçar voo lá fora. Eis como ele sublimou uma frustração. Já que não pôde estudar nos Estados Unidos em razão de vagas inferências políticas do pós-guerra, despachou para lá mais de 700 brasileiros nos últimos 25 anos. Um balanço com saldo positivo – especialmente para o Brasil.
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Comentários: 2
É uma pena que empresários como Sheun Ming Ling, são poucos em nosso imenso Brasil.
Caso houvesse uns dez em cada cidade brasileira, teríamos um verdadeiro exército de ótimos profissionais, e todos com conhecimento e tecnologia de ponta.
Só temos que lamentar a perda de um grande emigrante que fez tanto pelo país que escolheu para viver.
Que seus filhos continue seguindo o exemplo, que herdou do pai.
Que legado Sr.Sheun! Amei conhecer a história desta família e de onde surgiu o Instituto Ling ??