Um escândalo anunciado
Aos 62 anos, e já em condições de se aposentar, o ministro do Tribunal de Contas da União João Augusto Nardes (foto) está à frente de uma auditoria especial. Revisa os passos de uma longa carreira pública que se iniciou em Santo Ângelo (RS), em 1973, quando se elegeu vereador pela Arena, e que prosseguiu a bordo dos sucedâneos PDS, PPB e PP até 2006. Ano em que renunciou ao mandato de deputado federal depois de eleito, pelo Congresso, para integrar o TCU. Por enquanto, resiste aos sussurros do PP, que o quer de volta à política depois da exposição que teve como presidente da corte de Contas em plena eclosão do escândalo na Petrobras. Antes de deixar a presidência do TCU, em 31 de dezembro, Nardes, que é administrador por formação, lançou um livro sobre governança pública – tema que considera crucial para dar conta das ineficiências do Estado, como sustenta nesta entrevista para AMANHÃ.
Como vê a escalada das investigações sobre casos de corrupção no Brasil, a partir dos desdobramentos da Operação Lava Jato?
Bem, para nós não é surpresa. O TCU vinha alertando a Petrobras e o próprio governo de que a companhia estava sob uma grande suspeita. De várias formas, inclusive conversas individuais, vínhamos nos últimos oito anos chamando a atenção dos gestores e da direção da Petrobras, e dizendo que estávamos muito preocupados. Então, para o TCU, tudo isso que veio à tona não é uma coisa, assim, de outro mundo.
Como se deram essas advertências?
Quem é auditado é o primeiro a saber que existe uma auditoria – seja a Petrobras, seja a presidência da República. Nós fizemos vários acórdãos a respeito da Petrobras. E passamos as informações dos nossos acórdãos para o Ministério de Energia, para a Petrobras, para a Casa Civil – todas as áreas. Esses alertas começaram ainda no governo do presidente Lula.
O que está na origem de todos esses desvios de recursos, na sua visão?
Há nove anos vimos discutindo no STF um decreto presidencial que dá à Petrobras uma proteção legal para que faça contratações sem seguir as exigências da Lei 8.666, que rege as licitações. O resultado deste decreto é um número que impressiona. Neste ano, dos R$ 84 bilhões de investimentos contratados pela Petrobras, nada menos que 60% foram feitos sem licitação. Isto é, via carta-convite a empresas que fornecem para a Petrobras. Fica muito fácil de direcionar a contratação.
Em que estágio está a avaliação desse decreto presidencial no STF?
O decreto está para ser julgado, mas ainda não foi. Está sendo discutido ao longo desses nove anos. Recentemente, eu fiz uma visita ao ministro Gilmar Mendes e ao ministro Ricardo Lewandowski e pedi que seja acelerado esse processo. Eu já tinha ido falar com o Joaquim Barbosa. Falei com vários ministros do STF durante a minha gestão, ano a ano. Tudo isso que estamos vendo agora com a Lava Jato é decorrente da autonomia dada à Petrobras para contratar sem licitação. Até acho que, no contexto da competição global que existe em torno do produto que a Petrobras vende – petróleo, gás, diesel, gasolina –, é justificável uma certa autonomia. Esse decreto presidencial provavelmente se inspirou na necessidade de romper amarras de um gestor público que opera em mercados altamente competitivos. Mas essa liberdade não poderia acontecer na atividade-meio, que é fazer, por exemplo, uma refinaria. Uma refinaria, aliás, que tinha custo inicial de US$ 2,5 bilhões e hoje o gasto já está em R$ 20 bilhões... Acho um absurdo fazer uma refinaria com esse custo sem lei de licitações, porque aí você manipula preço, direciona prazo. Nós, no TCU, já condenamos 11 diretores da Petrobras, mas não se pode ir além porque eles se utilizam do decreto presidencial para justificar a não realização de licitação. Legalmente, estão ao abrigo desse decreto.
Como os órgãos de controle no Brasil podem atuar de uma forma eficaz, zelando pela qualidade do gasto público, mas sem paralisar empresas públicas e interromper obras fundamentais para a infraestrutura e para o crescimento econômico do país?
O que nós propomos é um repactuamento desses contratos, isto é, retirar o sobrepreço que foi colocado lá e continuar a obra. Nesses últimos cinco anos, nós conseguimos uma economia de R$ 105 bilhões com a repactuação de contratos. Por exemplo, em obras para a Copa do Mundo, ou mesmo estádios: tu mandas repactuar o contrato porque está acima do preço, baixa o custo e, assim, faz uma economia significativa sem parar a obra – só repactuando. Claro, tem empresa que não aceita. Mas esse é o caminho que tem sido seguido, e que é indicado no caso desse dinheiro cobrado a mais e que foi canalizado para os negócios investigados na Operação Lava Jato. Dessa forma as obras não param. Mas isso não significa que lá na frente essas empresas não possam ser punidas com multas e, também, ser consideradas inidôneas. Quando é possível punir, nós punimos.
De que forma?
Entregamos para o Tribunal Superior Eleitoral, este ano, uma lista de 6.603 pessoas que não tiveram as contas aprovadas pelo TCU. São governadores, ministros, prefeitos, gestores, deputados, senadores – e entre eles, três governadores que não podem ser candidatos por oito anos, em razão de que não tiveram as contas aprovadas pelo TCU. Então nós condenamos muita gente. Mas só condenar não resolve nada. O que eu penso é que a corrupção jamais vai ser combatida se não melhorarmos a governança do país. Publiquei um livro recentemente para defender esse ponto de vista. Discuti esse assunto com governadores, chamamos os 26 tribunais de contas do país para discutir um pacto pela boa governança – ou um pacto contra a corrupção. Se não tivermos planejamento estratégico, metas, instrumentos de avaliação; se não tivermos uma estrutura organizada de gestão pública como um todo, não será possível combater a fraude, a corrupção. E não será possível atacar os gargalos do Estado, que decorrem da falta de organização nos três âmbitos: municípios, Estados e União.
Quais são esses gargalos?
São, principalmente, três: educação, saúde e infraestrutura. Nós levantamos as deficiências da atuação do Estado nesses três setores, por meio do que chamamos de auditorias operacionais. Essas auditorias mostram o desempenho do setor público, dentro da ideia de que o TCU deve ser um auditor dos problemas da nação. Apresentamos os resultados para o Michel Temer, que estava representando a presidente Dilma no evento do TCU.
Por falar em governança do país, o Tribunal de Contas da União, apesar do nome, não é vinculado ao Poder Judiciário. É apenas um órgão auxiliar do Congresso Nacional. Isso não diminui sua independência?
O TCU é vinculado ao Congresso, mas tem total autonomia. O Ayres Brito {ex-ministro do STF) chega a dizer que o TCU não é nem Judiciário nem Congresso, é um poder à parte. O artigo 71 da Constituição deixa claro que cabe ao TCU avaliar a qualidade, a eficiência, a eficácia e a efetividade do serviço público. Nós, ministros do TCU, somos eleitos por votação secreta na Câmara e no Senado. São três da Câmara, três do Senado. Dois vêm da carreira de auditores – são técnicos de uma lista grande que vai para a escolha do presidente da República – como também vão para o presidente os nomes dos ministros do STJ e do STF. Eu entendo que, no nosso caso, no TCU, a autonomia é ainda maior, porque seis de nós são eleitos via Senado e via Câmara, não pelo presidente da República. E, veja, nós somos um tribunal administrativo que fiscaliza o Judiciário. Fiscalizamos o ministro da Suprema Corte também. Enfim, somos vinculados ao Congresso, mas entre aspas. Somos independentes. Fiscalizamos e podemos condenar deputados, senadores, governadores...
A governança do TCU, a relação com os poderes, não poderia ou não deveria ser mais simples?
Acho que a autonomia do TCU para fiscalizar os três poderes, sem ser dependente de nenhum deles especificamente, é hoje um dos pilares da democracia do Brasil. O formato construído para a corte de Contas do Brasil é um dos melhores dentro do contexto mundial. Como presidente da entidade que congrega todos os tribunais de contas da América Latina, conheço todos esses movimentos. Inclusive criamos no Peru, recentemente, uma rede contra a corrupção na América Latina, e posso dizer que o formato adotado pelo nosso TCU, no Brasil, é um dos mais independentes do mundo. Nosso modelo, que se assemelha ao da França, é muito respeitado lá fora. Nós nos sentimos independentes para julgarmos a quem quer que seja. Essa mistura de técnicos e parlamentares nos ajuda muito nessa missão – nos dá uma visão macro.
O tribunal recebe denúncias de cidadãos? Ou o brasileiro denuncia pouco por medo de revanche ou por julgar que não vai dar em nada?
O brasileiro denuncia, sim. E depois que designamos um ministro para atuar como ouvidor as denúncias cresceram muito. Recebemos milhares delas. Qualquer cidadão pode mandar o dado, a informação, para o TCU e nem precisa se identificar. Isso ajuda bastante o trabalho do TCU, que tem 1.700 auditores espalhados em todo o Brasil, e que fazem um trabalho muito importante. Essa informação sobre os contratos da Petrobras quem levantou fomos nós. A Polícia Federal entrou no caso depois que teve conhecimento das nossas auditorias. Aliás, boa parte dessas operações da Polícia Federal, como a Voucher [envolvendo o Ministério do Turismo], a Lava Jato, resulta de auditorias do TCU. Repassamos as informações para a Polícia Federal. Eles veem os indícios e vão atrás.
Com base em auditorias que o TCU está realizando, o senhor pode dizer se estão a caminho casos ainda mais rumorosos que o da chamada Operação Lava Jato?
Os problemas trazidos pela Lava Jato estão consubstanciados na formação do poder no Brasil. Se nós continuarmos com essa formação do poder, que é o que proporciona tudo isso que está sendo denunciado, vamos continuar tendo escândalos do tamanho deste, da Operação Lava Jato, com desvios de recursos servindo para o partido A, B ou C fazer caixa para a campanha. Ou se faz um grande pacto pela governança ou daqui a um ano ou um pouco mais teremos outro grande caso de corrupção. A estrutura de poder está consubstanciada para proporcionar e favorecer escândalos no Brasil.
Como se muda a estrutura de poder?
O modo como o governo conduziu a mudança da lei do superávit primário, decidindo que só liberaria as emendas parlamentares se a proposta do Planalto fosse aprovada no Congresso, é uma prática que precisa acabar. O parlamentar fica refém do governo, porque depende dessa liberação de recursos para ajudar suas comunidades. E, como refém dessa estrutura que obedece ao comando presidencial, o Congresso acaba não fazendo o que deveria fazer, que é fiscalizar o governo. Daí a importância do Tribunal de Contas da União, que é um órgão com autonomia, com funcionários concursados, com ministros eleitos pelo Congresso. Mas é preciso haver uma mudança global na governança pública para dar fim a práticas como a distribuição de ministérios conforme os apoios obtidos no Congresso, o toma-lá-dá-cá, a destinação das pastas para financiar o partido A, B ou C na campanha seguinte, como ficou demonstrado.
O presidencialismo de coalizão caminha para um esgotamento?
Esse modelo é péssimo para a estrutura democrática do país. Porque o Congresso, de certa forma, está engessado, com os parlamentares se tornando reféns do governo para a liberação das emendas de interesse de suas comunidades. Nesse quadro, o Senado e a Câmara não têm autonomia para fazer um contraponto ao Executivo, não têm força para ser aquele contrapeso que o Parlamento deveria ser. Nesse nosso modelo de presidencialismo, quem domina é quem está no Poder Executivo, impondo-se sobre os demais poderes – especialmente sobre o Congresso Nacional.
O senhor é a favor do parlamentarismo?
Eu sou parlamentarista. Caso estivéssemos agora sob um sistema parlamentarista, e ficasse provado que boa parte do Congresso está envolvido – o que é bem provável – nesse escândalo {da Operação Lava-Jato}, o Congresso seria dissolvido e haveria uma nova eleição. E o novo Congresso escolheria um primeiro-ministro, um chefe de governo, comprometido com um plano de governo. E então discutiríamos um plano, e não apenas uma escolha de nomes, Dilma ou Marina ou Aécio. O debate se daria em torno de propostas para o país, de um projeto de Estado – e não um projeto de figuras, de pessoas de partidos.
O senhor, um homem de partido – Arena, PDS e PP, sucessivamente –, se pudesse moldar uma reforma política, por onde começaria?
Eu defendo o Parlamentarismo como uma forma equilibrada de a população ter acesso ao poder. Ou seja, no momento em que se dissolve o Congresso, por envolvimento em corrupção, o povo vota novamente, e toma sua decisão. Quanto ao voto, defendo o distrital misto, porque dá consistência à discussão dos grandes temas da nação sem, no entanto, perder o aspecto de contemplar os interesses regionais. E, embora entenda que o voto poderia ser facultativo, penso que, aqui no Brasil, ainda não amadurecemos o suficiente para isso. Ainda temos uma população muito pobre. Reconheço, porém, que o voto facultativo seria uma forma de encaminhar um processo de maior conscientização da população brasileira.
Empresas devem ser impedidas de contribuir com campanha eleitoral?
Eu acho que sim. Sou a favor do financiamento público para limitar as ações privadas nessa área. Veja só o frigorífico JBS brigando porque não quer a ruralista Kátia Abreu como ministra. É um caso típico de interesse de um segmento, e não o interesse coletivo, que está no comando dessa ação.
Qual a sua opinião sobre a aprovação o orçamento para 2015?
Eu chamei isso de “improvisação”, em uma entrevista que saiu no Jornal Nacional. É o chamado jeitinho brasileiro. Tínhamos que ter um planejamento adequado. Liberar os recursos durante todo o ano, e não somente esperar chegar o fim do ano e aí fazer uma negociação política para acertar o caixa no final. Isto é uma demonstração de falta de boa governança no país. Porque o correto é a gente planejar as coisas com antecedência, estabelecer quanto nós vamos gastar por mês... O cidadão faz isso no seu orçamento. O governo deveria ter essa mesma capacidade. O que acontece, infelizmente, é este acerto lá no final do ano, com manobras para fazer um acerto de superávit. Um superávit arranjado, para acertar as contas. Isso é contabilidade criativa. É improvisação. É falta de planejamento adequado. É falta de boa governança. E isso acontece nos Estados, nos municípios e na União.
Neste quadro, que papel devem desempenhar os tribunais de contas dos Estados?
Progredimos muito. Trouxemos os tribunais de conta para trabalhar conosco e estamos avançando. Há no Sul e em outras regiões tribunais de contas com boa capacidade. Junto com eles, nós do TCU fizemos auditorias coordenadas sobre educação, saúde e outras áreas fundamentais da atuação do setor público. No caso da educação, por exemplo, fizemos uma grande auditoria na nação. Descobrimos que, de 390 mil professores de Ensino Médio que ensinam para 51 milhões de jovens, 61 mil educadores estão fora da sala de aula. Por isso é que não há se vê uma educação de qualidade chegando aos brasileiros. Dos 390 mil professores, 46 mil não foram preparados para ensinar uma matéria específica, como matemática. O resultado é que estamos com indicadores cada vez piores na educação, e portanto incapazes de competir, no mundo globalizado, com uma mão-de-obra de maior valor agregado.
E na saúde, o que mostraram as auditorias? O “Mais Médicos” melhorou esta situação?
Um flagelo, a saúde no Brasil. Vou dar alguns números: são 115 hospitais federais, e 81 deles não tem nem enfermeira nem médico para atender a população. E 77 não tem equipamento necessário para fazer exames. O fato de trazermos 10 mil médicos de Cuba já mostra uma falta de planejamento: o país não se preparou para o atendimento à população. Passei dois anos viajando pelo país, batendo na tecla de que é necessário planejar a nação.
Depois de entregar o cargo de presidente do TCU, quais são seus planos?
Vou continuar defendendo a tese da governança como uma bandeira que precisa ser apregoada no país. Eu tenho viajado muito, dado palestras... Eu represento também os tribunais de contas da América Latina. O que nós estamos fazendo aqui de auditorias coordenadas com todos os tribunais estaduais de contas estamos fazendo em toda a América. Apresentamos o mapa sobre a questão ambiental em toda América Latina, e já mandei para o Ban Ki Moon nossa proposta sobre unidades de conservação, isto é, a reserva que cada um dos países da região precisa ter combater o efeito estufa. Um projeto que começou aqui no Brasil e que levamos para a América Latina. Fiz palestra na China, fiz uma palestra no Egito, na Rússia, defendendo como este nosso projeto pode se transformar em um instrumento de controle ambiental em nível global.
E fora do Tribunal de Contas da União, o senhor volta à política partidária?
Eu posso me aposentar pelo Tribunal. Já tenho tempo para isso. Sobre política, o partido (PP) está falando comigo. Aliás, o meu ex-partido. Mas dificilmente eu volto para a política. O Brasil avançou, mas em aspectos como a administração pública continua ainda muito aquém do padrão de eficácia que o brasileiro precisa. Ou seja, continuamos pagando impostos em nível superior à média mundial – acima de 36% do PIB, quando o Japão, por exemplo, apresenta uma carga tributária de 25%. E a contrapartida do Estado, no Brasil, é oferecer péssimos serviços. Evoluímos como nação no setor privado. Mas o setor público ainda deixa muito a desejar. E, se continuarmos assim, com transporte extremamente ineficiente, que não trata com dignidade o cidadão, e o obriga a levantar às 4 da manhã para ir trabalhar, o Brasil pode viver convulsões como já aconteceu antes da Copa do Mundo.
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