Seu patrão é um algoritmo?

Tudo depende da forma de relacionamento entre a plataforma e o usuário que se cadastre como prestador de serviços
Conceito tradicional: para caracterizar vínculo de emprego, o prestador de serviços deve trabalhar de forma pessoal e não eventual

Novas formas e dinâmicas de trabalho se tornaram presentes no mercado dos últimos anos. Ligadas a soluções da tecnologia, são sinônimos de um caminho sem volta: os produtos e serviços dessas atividades já fazem parte da vida da população, especialmente dos jovens. São inúmeros os exemplos: aplicativos de mobilidade, de encomenda de alimentos e refeições, de compra e venda de mercadorias e até mesmo de prestação de serviços estéticos, que estão à disposição nas lojas dos diversos sistemas operacionais de computadores e telefones celulares. 

E tudo isso irá se intensificar por aqui no curto prazo, como mostram as experiências de países que se consolidaram como vanguardas nesse aspecto, como a China. Normalmente, essas plataformas permitem o cadastro de quem tem interesse em prestar serviços, vender seus produtos, contratar a prestação dos serviços ou adquirir o produto ofertado. 

Muitas possuem cadastro de três pontas da relação: o vendedor, o comprador e o responsável pela entrega da mercadoria. Mas, afinal, qual a natureza jurídica do trabalho prestado por motoristas, entregadores, manicures e tantos outros profissionais envolvidos nessas relações — cujo interesse não é comercial, de compra e venda de produtos e mercadorias, mas de prestação de serviços?

Para a caracterização de vínculo de emprego, previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o prestador de serviços deve trabalhar de forma pessoal, não eventual, remunerada e mediante subordinação. Na maioria das vezes, as características da remuneração, pessoalidade e não eventualidade se fazem presentes nas relações entre os usuários cadastrados para a execução das tarefas e as plataformas — ficando apenas para a presença do quarto elemento, no caso, a subordinação, a constatação ou não do vínculo empregatício.

O conceito tradicional de subordinação certamente não estaria presente nessas modalidades virtuais de trabalho. Não teria o prestador de serviços como receber ordens do contratante, até mesmo porque a tarefa é desenvolvida a partir dos dados cadastrados na plataforma, sem controle direto do gestor da execução da atividade, por exemplo. 

Evidentemente, não se desconhece o monitoramento, por exemplo, que as empresas de mobilidade possuem por meio do GPS do percurso realizado pelos motoristas cadastrados. Porém, isso não é suficiente para a caracterização de uma relação empregatícia.

Os aplicativos possuem formas diferentes de relacionamento com seus usuários. É no detalhamento dessas características que se pode identificar a real natureza jurídica da prestação de serviços mantida entre o prestador e o tomador. As plataformas, por exemplo, que dão total liberdade para a aceitação ou não da tarefa — sem qualquer ingerência na tomada de decisão — certamente ficam mais distantes do risco de ver os usuários prestadores de serviços a ela vinculados como potenciais empregados. 

Ao contrário disso, aquelas que aplicam punições aos usuários pelo exercício dessa liberdade acabam atingindo uma zona muito próxima daquela em que está a relação tradicional entre patrão e empregado. Por essa razão, elementos como liberdade para atuar em outras empresas ou aplicativos do mesmo segmento, ausência de punição caso haja recusa na aceitação da execução da tarefa, ausência de obrigatoriedade de tempo mínimo de conexão ou de períodos de permanência on-line e fixação do preço dos serviços prestados são variáveis cruciais para a resposta ao questionamento proposto no título deste artigo.

Avaliação conjunta
Todos esses elementos precisam de uma avaliação conjunta. Um aplicativo que fixa o preço previamente da atividade de um serviço pode perfeitamente não ter características de natureza empregatícia, em razão dos demais elementos da relação. O patrão desses trabalhadores é um algoritmo? A resposta adequada a ser dada, atualmente, é que o algoritmo pode ser ou não ser o patrão. Tudo depende da forma de relacionamento entre a plataforma e o usuário que se cadastre como prestador de serviços.

Para que se tenha maior segurança jurídica — tanto para usuários como para as empresas detentoras da tecnologia —, o ideal é que essas profissões sejam regulamentadas, até mesmo para que os trabalhadores possam estar cobertos pela Previdência Social. Não se pode fechar os olhos para a situação de um motorista de aplicativo que venha a se acidentar, ficando incapacitado para exercer sua profissão, e que não esteja realizando recolhimentos ao INSS. Se a empresa gestora da mobilidade não possuir uma boa política de apoio ao motorista, tem-se um desastre social.

Não defendo a necessidade de que esses trabalhadores sejam empregados formais, regidos pela CLT. Proponho, isto sim, que sejam contribuintes do INSS, haja obrigatoriedade de um seguro de vida contra acidentes do trabalho, dentre outras características pré-fixadas, para que possam ser inseridos em plataformas ofertando seus serviços. Os requisitos para o cadastramento poderiam ter condições mínimas fixadas em lei.

A partir da regulamentação da profissão, esses trabalhadores precisariam se organizar e tornar sustentáveis suas relações com as plataformas disponíveis. Com isso, certamente os usuários teriam também maior ganho, pois haveria trabalhadores de melhor qualidade executando as atividades no sistema. 

A solução de regulamentação da profissão estaria até mesmo em conformidade com as disposições do art. 442-B da CLT, que estabelece: "A contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3º desta Consolidação".

Não enfrentar essa questão é deixar a solução de eventuais conflitos nas mãos do Poder Judiciário, mais especificamente da Justiça do Trabalho, o que dependerá da avaliação subjetiva de cada caso e até mesmo dos julgadores. Sabemos que já foram apreciados casos, até mesmo pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), de pedidos de vínculo empregatício de motoristas de aplicativos. Mas não estou propondo solução para apenas um único tipo de situação, mas para todos os que prestam serviços por meio dessas plataformas.

A sociedade está avançando e serão cada vez mais presentes em nossas vidas relações dessa natureza. É provável que, até o final do ano, tenhamos novos tipos de serviços disponíveis, que sequer imaginávamos que seriam possíveis. Haverá um universo muito mais expressivo de trabalhadores nessa situação em um curto espaço de tempo. 

Não podemos deixar de pensar que estamos diante de um real problema, que precisa ser enfrentado, mas que não tem sua solução no atual modelo de proteção do trabalhador, regido pela CLT. Insistir nesse caminho acabará desestimulando o lançamento de outras soluções da tecnologia e a geração de trabalho. O grande desafio é encontrar o equilíbrio para tal regulamentação, evitando que sejam inviabilizados os serviços que hoje estão à disposição de todos, na palma de nossas mãos.

*Advogado, mestre em Direito, especialista em Direito do Trabalho e sócio-diretor do escritório Rossi, Maffini, Milman e Grando Advogados

Esse conteúdo integra a edição 338 da revista AMANHÃ, publicação do Grupo AMANHÃ. Clique aqui para acessar a publicação on-line, mediante pequeno cadastro.

Veja mais notícias sobre JustiçaBrasilTecnologia.

Veja também:

 

Comentários:

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Visitante
Sexta, 26 Abril 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://amanha.com.br/