Um movimento forjado por CPFs inquietos

Criado há menos de três anos para estimular a inovação na Serra Gaúcha, Instituto Hélice atrai cada vez mais empresas

Felipe Corradi, diretor industrial na Florense, lembra como se fosse hoje. A empresa, de Flores da Cunha (RS), sediou uma das primeiras reuniões do Instituto Hélice. No encontro, também estavam executivos da Randon, da Marcopolo e da Soprano, todos pela aceleradora ACE. O clima que pairava no ambiente era de latente competição. Afinal, ali estavam companhias tradicionais gigantes que estavam jogando muitas fichas na incorporação de novas tecnologias e em uma espécie de corrida pela inovação.

"Parecia que cada um tinha ido até lá levando consigo uma plaquinha que identificava sua empresa. No entanto, chegou uma hora em que fomos obrigados a retirar essa identificação e o encontro fluiu naturalmente, com cada representante realmente se abrindo e compartilhando as dores comuns e também as soluções", rememora Corradi, hoje conselheiro e futuro presidente do Hélice, cargo que deve assumir a partir do quarto trimestre de 2021. Esse espírito desarmado, irrequieto, empreendedor e, o mais importante de tudo, agregador, faz parte do DNA da organização desde os seus começos, ainda em agosto de 2018.

O atual presidente Daniel Ely, que responde pela divisão de serviços financeiros e digitais do Grupo Randon, gosta de dizer que os CPFs são atraídos primeiro pela filosofia do Hélice para, em seguida, trazerem seus CNPJs de arrasto. As diretorias da Marcopolo e da Randon, responsáveis pela iniciativa, já haviam compreendido a importância do trabalho colaborativo somado à conexão com startups.

"Porém, ainda imperava a velha lógica da escassez na região, ou seja, quanto menos concorrentes, melhor. Hoje sobressai a dinâmica da abundância, pois quanto mais unidos estivermos, mais rapidamente crescemos todos juntos", afirma Ely. "Ainda que inicialmente o movimento tenha começado com grandes empresas, há toda uma preocupação para que o ambiente seja de um ecossistema sem protagonistas", concorda Petras Amaral, business head da Marcopolo Next, braço da companhia voltado para soluções de mobilidade.

A primeira fase pode ser resumida como a busca pelo entendimento mútuo entre as quatro grandes empresas envolvidas: Randon, Marcopolo, Florense e Soprano. O trabalho foi identificar problemas comuns entre elas e quebrar certos paradigmas. Para tornar os encontros mais objetivos, as participantes escolheram ao menos quatro vértices para serem trabalhados pelo grupo: recursos humanos, Indústria 4.0, alternativas logísticas mais baratas e soluções de interface com clientes, esse último voltado às áreas comerciais.

Em novembro de 2018, o quarteto promoveu o primeiro PitchDay com startups. A iniciativa fez com que elas fechassem contrato com mais de uma empresa na ocasião. O evento, além de oferecer escalabilidade para os empreendedores, também foi fundamental para que as startups recebessem mentorias sobre as soluções apresentadas.

"Isso nos fez lembrar que essas companhias tradicionais que ali estávamos representando também foram empreendedoras ao longo de suas existências. O evento funcionou como uma espécie de elixir para essas marcas, pois elas sempre tiveram a inovação como um de seus princípios", recorda Ely.

Eis um exemplo de como tudo se mostrava novidadeiro: as áreas de compras das empresas não tinham uma rubrica especifica para o pagamento de uma startup que apresentasse suas soluções em um pitch. Outro exemplo dos árduos começos foi instigar os funcionários a mudarem o mindset para projetos voltados à inovação.

A Soprano, tradicional empresa da região que fabrica desde fechaduras até materiais elétricos, ao ajudar a fundar o instituto, buscava inserir-se no ecossistema e descobrir o que havia de mais inovador no mercado, ao mesmo tempo em que impactava a sua cultura interna, que era historicamente conservadora.

"Num primeiro momento, conseguimos engajar a unidade de fechaduras nos movimentos de inovação. Quando as demais unidades perceberam os ganhos e resultados obtidos, passaram a participar mais ativamente das iniciativas do Hélice", comenta Sandra Suzin, coordenadora de RH da companhia no relatório de atividades do instituto que apresenta as principais ações do movimento no ano passado.

Em julho de 2019, onze meses depois do pontapé inicial, o Instituto Hélice deu um segundo passo. Ely conta que havia necessidade de oferecer uma metodologia básica de inovação para as novas associadas. Foi nesse interim que surgiu o grupo de investimentos como um instrumento para atrair e reter empreendedores na região. Participam da iniciativa investidores pessoas físicas ou jurídicas.

O objetivo é a captação de até R$ 4,5 milhões para realizar investimentos-anjo de até R$ 200 mil durante os próximos três anos. Entre 2019 e 2020, seis startups receberam aportes e mais 14 já estão na fila. Depois da concepção do próprio Instituto Hélice, em 17 de setembro de 2019, foi a hora de tomar outro importante caminho, justamente aquele que respondia ao anseio das interessadas em se associar: o framework de inovação.

"O espírito era fazer com que companhias mais maduras ajudassem as outras, com menos experiência, a também trilhar o caminho da inovação. Esse programa foi uma catapulta para o Hélice. Com ele, conseguimos reunir 15 associadas, pois elas viam muito valor nessa relação de troca mútua", detalha Ely.

Logo que se associam, as empresas recebem um diagnóstico sobre o grau de maturidade da inovação em suas rotinas corporativas. Desse modo, a organização também consegue se comparar com as outras sócias do instituto e, de acordo com cada caso, são apontados benchmarks para que a companhia iniciante possa buscar inspiração para preencher lacunas do seu processo de inovação.

Isso também colabora para que o instituto tenha uma prateleira de boas práticas que possam ser disseminadas em todo o ecossistema da região. Além da conexão entre si, as empresas associadas têm acesso a redes de fornecedores e parceiros através de um network ampliado. Com o auxílio do corpo executivo do Hélice, são executados eventos de capacitação, como workshops e treinamentos em temas como Design Thinking.

A cada dois meses, o Instituto Hélice lança desafios ao mercado. Eles são trazidos pelas próprias empresas, que montam pautas para interagir com startups. No ano passado foram executadas seis temáticas – como saúde, educação e recursos humanos – junto a mais de 170 startups inscritas para os processos de conexão.

Para facilitar a execução de negócios efetivos com as startups, as empresas receberam capacitações sobre os temas, bem como um manual de Prova de Conceito (POCs) e Fast Tracks para contratação. Outra iniciativa do Hélice é oferecer programas de mentoria para startups como uma ação de mão dupla. Enquanto um jovem empreendedor, por exemplo, busca soluções para uma empresa, o empresário utiliza sua experiência para melhorar a gestão financeira ou administrativa de uma startup.

Um elixir para grandes empresas tradicionais: PitchDays oferecem escalabilidade para os empreendedores e mentoria para startups

Colaboração
Ao receber uma ligação de Daniel Ely em dezembro de 2018, Solon Stahl, diretor executivo da Sicredi Pioneira RS, revela não ter entendido inicialmente o propósito. Alguns meses depois, no entanto, ele foi pessoalmente ao encontro de Ely. A motivação extra para se integrar ao movimento veio de um conhecido CPF de Stahl: Thomas Job Antunes, executivo do Hélice.

Ambos haviam se conhecido em 2017, pois Antunes era um dos consultores do Instituto Euvaldo Lodi (IEL) em uma ocasião em que a cooperativa de crédito estava fazendo parte de um treinamento no Serviço Social da Indústria (Sesi). O diretor da Sicredi Pioneira RS não demorou muito para perceber os benefícios da aproximação com o Instituto.

"A primeira descoberta que percebemos é que as soluções para nossos problemas podem estar prontas – ou que precisam de mínima adaptação, muito em razão da estreita conexão com as startups. No cooperativismo, sempre resolvemos internamente", revela. Hoje, a Pioneira tem várias provas de conceito em andamento com startups. Solon também se sentiu pessoalmente gratificado ao perceber no ecossistema formado pelo Hélice um forte espírito de colaboração, característica marcante do cooperativismo.

Stahl não apenas encontrou soluções para seu campo de atuação, como também ajudou outras companhias. A cooperativa criou a Goog, uma eficiente ferramenta interna de comunicação, que foi adotada com adaptações na Florense. Na fabricante de móveis o sistema ganhou o nome de Younner, e também é usado para treinamentos on-line.

"A plataforma fez brilhar os olhos da nossa equipe de TI e o Sicredi foi muito solícito conosco, abrindo o jogo sobre como funcionava o sistema", recorda Felipe Corradi, diretor industrial na Florense. Hoje Stahl é um dos membros do conselho de administração do Hélice, porém passará sua cadeira ainda neste ano para um representante da Sicredi Serrana, de Carlos Barbosa, cooperativa que se juntou ao Instituto a seu convite, assim como a Sicredi Caminho das Águas, de Rolante. "Ainda me sinto desafiado a alcançar o nível de debate do grupo, que é muito qualificado. Eles são especialistas em inovação e nós somos aprendizes. Nada como acreditar no poder do ecossistema, ou seja, quanto maior, melhor", entusiasma-se Stahl.

O "quanto maior, melhor" externado pelo executivo do Sicredi não configura apenas um desejo, mas uma realidade. O método empregado pelo Instituto Hélice está sendo replicado em outras regiões gaúchas, por meio de um programa específico da Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia (SICT) do governo gaúcho.

O Método Startup Lab Hélice de Inovação Aberta para o Rio Grande do Sul pretende consolidar uma estratégia estadual de desenvolvimento desse modelo de negócio. A metodologia foi lançada nas oito regiões do programa Inova RS, contando com a participação de casos de sucesso dessa implementação em empresas como Florense e o próprio Sicredi.

Além de compartilhar a experiência em outras regionais e fomentar o modelo de ecossistema, a terceira fase do Hélice também deve culminar, até o final deste ano, com a transferência para um local físico que promova maior interatividade. "Devemos ir para dentro da universidade e ter um ambiente único com um posto avançado para cada empresa, onde as startups e todas as associadas poderão se comunicar ainda mais", projeta Ely.

Outro resultado significativo para o Hélice é o reconhecimento conquistado pela iniciativa. O Instituto tem quatro empresas na lista das 50 mais inovadoras da região Sul, segundo o ranking "Campeãs de Inovação" publicado por AMANHÃ em parceria com IXL-Center, de Boston (EUA). Entre elas figuram as Empresas Randon, Fras-le e Marcopolo Next. Além disso, na categoria especial Ensino & Pesquisa, a Universidade Caxias do Sul (UCS) aparece na quinta colocação. Da Serra Gaúcha, completam a lista Valeo Climatização do Brasil, Meber Metais, Grendene e Intral.

“Imperava a velha lógica da escassez na região, ou seja, quanto menos concorrentes, melhor. Hoje sobressai a dinâmica da abundância”, afirma Ely

Cartão de visitas
A terceira fase também marcará a primeira sucessão no Hélice. Felipe Corradi, diretor industrial na Florense, prepara-se para assumir o posto que hoje é liderado por Ely. Ele pretende manter as iniciativas em curso, mas também planeja um novo salto para o ecossistema serrano.

"Um dos desafios será fazer com que a Serra Gaúcha se torne uma referência de inovação no estado, que seja um cartão de visitas do Rio Grande do Sul. Temos de expandir esse modelo nascido de empresas que procuravam curas para suas dores comuns", almeja.

Uma das dores que ainda persistem é a busca por profissionais de Tecnologia de Informação (TI) para abastecer os postos vagos em toda a região – hoje a carência chega perto de 400. Como não há pessoal suficiente para cobrir a demanda, companhias da Serra se obrigam a contratar profissionais de outros lugares, como Porto Alegre, São Paulo ou mesmo de Florianópolis e outras cidades catarinenses.

De acordo com Thomas Job Antunes, executivo do Hélice, conseguir programadores ou cientistas de dados pode levar até seis meses, enquanto na capital paulista esse período não passa de 30 dias. No que depender das expectativas, esse cenário tenderá a mudar no futuro. Antunes recorda que ao falar com startups do centro do país revelando que empresas de Caxias do Sul e região estavam interessadas em contratar, os empreendedores se surpreendiam.

Ele ouviu relatos de que, em um passado recente, a imagem que as empresas da Serra projetavam era de excessivamente localistas."Alguns deles destacavam a caricatura do gringo frio e diziam nem imaginar que um movimento como esse estivesse acontecendo no Sul do país. Para muitos, foi uma grande oportunidade de fazer negócios com várias companhias da região", resume o executivo, confiante de que muitas startups serão atraídas pelo ecossistema protagonizado pelo Hélice na Serra, assim como está ocorrendo com a Sirros IoT, de Novo Hamburgo.

A Sirros, que oferece soluções para a Indústria 4.0, deve abrir uma unidade fabril em Caxias do Sul até o primeiro semestre do próximo ano. A companhia, que também tem clientes em São Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina, fatura na Serra Gaúcha o equivalente a 40% da receita anual de R$ 2,5 milhões.Ainda em 2018, a companhia teve um primeiro contato com o Grupo Randon, e assim acabou criando uma relação com o Instituto Hélice.

A Fras-le, um dos negócios do conglomerado Randon, utiliza câmeras que fazem a conferência da qualidade das pastilhas de freio por meio de visão computacional. Diego Schlindwein, líder de operações e fundador da Sirros IoT, vê como muito saudável a relação que a startup tem com o ecossistema serrano.

"Possivelmente não estaríamos onde estamos se o Hélice não nos desse oportunidades para testar novas tecnologias", confidencia. O empreendedor lamenta que a região metropolitana, mais especialmente Novo Hamburgo, importante polo calçadista, não fomente um ambiente parecido com aquele propiciado na Serra Gaúcha. "O movimento estabeleceu um terreno neutro, em que todo mundo se encontra em nome da inovação. Desse modo, os executivos ficam mais à vontade e se obtém um caldo de cultura que contribui para o progresso de todos", destaca Schlindwein. Um balizador dessa nova fase de Caxias do Sul, por exemplo, é o desenvolvimento cada vez mais veloz da Indústria 4.0 na região.

A startup caxiense Scoreplan é testemunha da transformação destacada por Schlindwein. Ela já fornecia soluções para a Soprano antes do surgimento do Hélice e se mantém atenta para oportunidades que possam surgir quando o produto, que leva o nome da empresa, faz sentido para organizações ou companhias do ecossistema. O software, desenvolvido em 2017, ajuda a organizar o planejamento estratégico e orçamentário.

Assim como a Sirros IoT, a Scoreplan vê como um dos principais ganhos em se juntar ao movimento a condição favorecida para se aproximar de companhias que, por força própria, talvez não conseguisse acessar. "Antes [do surgimento do Instituto Hélice] as startups da região estavam sozinhas e não tinham apoio de grandes empresas. Em um passado recente, éramos obrigados a buscar processos de aceleração em Florianópolis, Curitiba ou mesmo em São Paulo. Agora está tudo mais fácil. E ver empreendedores voltando para a cidade tem sido bem comum", entusiasma-se Camila Agostini, gerente de marketing da Scoreplan. Mais um feito a ser comemorado pela orquestra de CPFs inquietos e seus CNPJs idem.

Esse conteúdo integra a edição 338 de AMANHÃ. Clique aqui para acessar a publicação on-line, mediante pequeno cadastro.

Veja também:

 

Comentários:

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Visitante
Sexta, 29 Março 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://amanha.com.br/