O sommelier deve calçar as sandálias da humildade

Ainda que este Blog seja um território dominado pelos vinhos, vou me dar a liberdade de entregá-lo às Humanidades. Caro amigo, se você for amante dessa bebida fantástica e chegar até o final deste texto, já me darei por satisfeito.  Por vezes, a gent...
O sommelier deve calçar as sandálias da humildade

Ainda que este Blog seja um território dominado pelos vinhos, vou me dar a liberdade de entregá-lo às Humanidades. Caro amigo, se você for amante dessa bebida fantástica e chegar até o final deste texto, já me darei por satisfeito. 

Por vezes, a gente é obrigado a tomar como exemplo ícones históricos para simplificar uma lógica natural (soou como um pleonasmo, mas sigamos em frente) – algo inimaginável, convenhamos, no complexo mundo da vitivinicultura. Faço isso espelhado em São Francisco, uma figura reconhecida pelo Catolicismo como um benchmark da humildade. O tomo como referência para poder destacar aquela que deve ser a maior virtude de um sommelier, aquele profissional responsável pela escolha, compra, recebimento, guarda e pela prova do vinho antes que seja servido ao cliente (aqui cabe um parênteses histórico: o criador da Lei brasileira que instituiu a profissão, se encontra aprisionado em Curitiba, por obra da Operação Lava Jato. Cá entre nós: mais uma ironia do destino que nos demonstra a importância da qualidade aqui destacada). Começo defendendo essa tese por algo muito simples: a imensidão do mundo vinícola onde cada país (ou região de um país), modo de fabricação, clima, enfim, interfere nas características organolépticas da bebida. Muita dedicação e tempo devem ser investidos na busca desse vasto conhecimento. Afinal, como alguém pode sugerir algo que minimamente não conhece? 

Por incrível que pareça, é possível conhecer o cliente logo na primeira taça que ele degusta (em alguns casos, desculpem-me, degluta). Vejam que somente ao ter o cuidado de prestar atenção nesse detalhe é necessário que o profissional tenha sensibilidade. Mas, ao mesmo tempo, que imploramos ao sommelier que seja terno, ele tem de se despir de preconceitos. Ainda que a Pinotage [vinífera tida como ícone da vitivinicultura africana, fruto de um corte feito em laboratório cruzando a Pinot Noir e a Cinsault, conhecida no país como Hermitage, daí a junção das palavras que batizou a casta] tenha pronunciados aroma de esmalte e borracha, há quem a venere. Resta ao profissional procurar informações para abastecer o talvez desassistido apreciador do rótulo. Do mesmo modo, o sommelier deve se dar conta que no Brasil se vendem Proseccos de péssima qualidade, enquanto na Itália se comercializam verdadeiros tesouros!

E prestem atenção em tamanha incongruência: talvez essa seja a única funcionalidade no mundo em que a pessoa tem de se portar como um ignorante, mas venerar todas as conquistas em seu campo de atuação. Ou seja, aqui não há espaço para se dizer de Esquerda, de Direita ou de Centro. É um lance de Xadrez onde a regra que mantém o jogador na partida é receber com maestria o contraponto do oponente. Há quem goste de vinho – mesmo fino – que tenha pesada interferência do enólogo. E existem, também, os puristas. Há quem louve o Chardonnay barricado, o herbáceo Sauvignon Blanc, o uso de barricas de segundo uso (ou até mesmo os chips que, mesmo utilizados, alguns produtores teimam em dizer que é de barrica americana ou francesa), o “sur lie” etc. Já notaram quantas virtudes um sommelier precisa somar para, ao menos, sobreviver no Brasil? Recapitulemos: humildade, busca pelo conhecimento constante, sensibilidade, respeito pela opinião alheia etc...

Você pensa que a lista terminou? Nessa função, temos de saber contar boas histórias – seja no estilo Dorian Grey em seu “Cinquenta Tons de Cinza” ou mesmo no bíblico Antigo Testamento. Às vezes, aliás, é necessário muito jogo de cintura para lembrar a transformação da água em vinho – e destacar que Grey fez praticamente a mesma coisa ao apresentar um Chablis para a mulher que encantou numa noite qualquer (ainda que ele, parece, ter mesmo gostado de provar uma mesma casta, como vocês poderão se dar conta neste post que escrevi sobre a relação do livro com a bebida que, inclusive, teve repercussão nacional). 

Diante do fato que meu Chardonnay produzido na região dos Campos de Cima da Serra segue aprazível, acho de bom tamanho terminar essa pensata por aqui. Mas com a certeza de uma missão cumprida: aquela de, ao menos, trazer maior necessidade de sermos humildes nessa que ainda será uma das profissões mais nobres deste país tão logo a economia volte aos eixos (pasmem: esse texto está na gaveta há mais de um ano e apenas agora o espanei. E a economia, bem a economia, vocês sabem...). 

Afinal, há coração mais universal do que o brasileiro? E o mundo do vinho assim é – como bem sabemos. Mas lembre-se de vestir as sandálias da humildade tão logo pise nesse campo tão apaixonante e, ao mesmo tempo, repleto de complexidades. Mas quem disse que o amor não tem lá suas idiossincrasias? Não sem razão, tal sentimento e o vinho possuem tamanha interligação. 

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Sexta, 26 Abril 2024

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