Eike e a esquizofrenia brasileira

Na quinta à noite saí para comer uma pizza com um amigo numa ruidosa cantina dos Jardins. Como metade da quadra estava às escuras – no rastro da queda de dezenas de árvores em uma das áreas mais nobres da cidade e dos consequentes danos à fiação elét...
Eike e a esquizofrenia brasileira

Na quinta à noite saí para comer uma pizza com um amigo numa ruidosa cantina dos Jardins. Como metade da quadra estava às escuras – no rastro da queda de dezenas de árvores em uma das áreas mais nobres da cidade e dos consequentes danos à fiação elétrica –, muitos faziam hora nas mesas da calçada, sem pressa para ir embora e, naturalmente, espichavam as conversas propícias ao momento. Acostumado à solidão, desenvolvi o hábito de acompanhar o bate-papo de alguns grupos à minha volta. Não para bisbilhotar, mas simplesmente porque me interessa muito entender a agenda de pessoas que têm uma vida mais normal do que a minha. Uma palavra ecoava a todo instante: Eike. Como pano de fundo, o mandado de prisão que corre contra o empresário, cujo nome estaria na Interpol. No meio do burburinho, comecei a alinhar conclusões sobre o que chamarei de esquizofrenia brasileira.

Pois bem, tenho certeza de que a imensa maioria daqueles jovens de até 45 anos até bem pouco tempo engrossavam as filas de autógrafo do empresário, no afã de adquirir seus escritos ocos e lhe tocar a mão para se ver contagiados pelo efeito "X" – o símbolo de multiplicação e prosperidade que mesmerizou meio mundo. Embora não tenha nenhuma capacidade premonitória especial, cá com meus botões tinha a respeito de Eike a mesma sensação que me inspirava nos anos 1990 o hoje senador Fernando Collor de Mello, na época candidato a presidente do Brasil. Será que as pessoas, tão carentes de heróis, não viam naqueles rapazes a propensão aberrante para o blefe? Será que uma bem articulada assessoria de imprensa e um discurso ufanista obliteravam a noção clara de que a realidade simplesmente não suportaria tamanhas doses de voluntarismo e leviandade? 

Mas voltemos aos comensais da pizzaria. De ex-fãs e entusiastas de um encantador de serpentes excepcional, me estranha imensamente o prazer quase sádico que muitos deles experimentavam em prever dias dantescos para Eike doravante. Um deles confessava que chegou a invejá-lo sumamente quando lhe viu a esposa desfilar de coleira com o nome do "dono" gravado em ouro. Mais ainda quando viu uma foto em que ele pousava ao lado de um carro de milhões, estacionado na própria sala de visita. Por fim, um terceiro confessou que chegou a acreditar que era uma questão de pouco tempo para que ele deixasse a comer poeira Carlos Slim, o bilionário mexicano, Bill Gates e Warren Buffet, para não falarmos do trio cervejeiro brasileiro. Pois bem, ao invés de associar a "débâcle" de Eike à superficialidade dos próprios devaneios, eles preferem demonizar o ex-ídolo com crueldade, como se a decepção lhe valesse uma multa.

Acho, portanto, que antes de esfregar as mãos e se preparar para ver o empresário purgar dias no inferno prisional brasileiro, bem mais salutar teria sido ler o livro de Malu Gaspar, talvez a melhor biografia que saiu sobre Eike. Rapaz mimado, mas empreendedor. Ali estão dissecadas as condutas que sinalizavam há anos a execução atabalhoada de uma receita de bolo em que havia muito fermento para pouca massa. Muito marketing para pouca substância. Muita leviandade e pouco caso para com os que lhe questionavam de forma mais contundente. O adjetivo que mais distribuía entre os que tentavam lhe contrariar os devaneios era um proverbial "você é muito calça curta, rapaz", forma de ridicularizar um mínimo de conservadorismo. Grave, gravíssimo, foi ter interferido nos caminhos da Justiça quando o filho atropelou e matou um transeunte no acostamento – e pior ainda quando o nomeou conselheiro do grupo que comandava. 

Esses são os aspectos que deviam estar sob escrutínio desse estranho fã clube, muito antes de passar ao linchamento que se inaugura com a chegada de Eike ao Brasil, se não se decidir a ir para a Alemanha, país de que é cidadão. O que quero dizer? Que o ser humano é animal de estranhíssima natureza. Mais ainda aqui no Brasil. É como se um imenso circo ora vibrasse com as proezas de um gladiador inspirado, ora quisesse ver os leões estraçalhar os membros daquele que até ontem aplaudiam. Cabe aos advogados a difícil tarefa de buscar alternativas para seu cliente. Nunca, em tempo algum, nutri simpatias pelo chamado capitalismo de estado que anabolizou a fortuna do filho do grande homem que é Eliezer Batista – a quem frequentemente o filho fazia ouvidos moucos. Não desejo mal algum a Eike, da mesma forma como jamais teria comprado um carro usado dele. 

É nessas horas que espero que a Justiça saiba contextualizar os atores dentro dos cenários em que lhes coube atuar. A infantilidade do malfadado empresário, a complexidade de seus instintos de jogador e as relações conspícuas que travava com altas instâncias no Rio de Janeiro – onde tinha desde restaurante chinês a terminal portuário –, precisam ser consideradas à luz de uma onda euforizante que carregou em seu bojo bem mais de um empresário ou segmento. São infames as atitudes espúrias que embutem fortíssima dose de confiança na impunidade, caso aplicável a ele e ao tresloucado governador. Mas algo me desagrada no mais profundo de meu ser quando vejo comensais de uma pizzaria de elite gargalharem sobejamente com o que consideram a hora da verdade de Eike. A hora de enfrentá-lo era aquela em que ele reinava como o menino mimado do incipiente capitalismo brasileiro. Chutar cachorro morto, passatempo de covardes, é simplesmente abjeto.                              


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Sexta, 29 Março 2024

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